:: Os artigos individuais nesta série foram originalmente
:: publicados na revista Daniella Thompson on Brazil.

 Tradução: Alexandre Dias

 

As Crônicas Bovinas, Parte 28

Nazareth fecha a raia.

Daniella Thompson

18 de novembro de 2002


Dois fãs de Ernesto Nazareth no Rio de Janeiro:
Artur Rubinstein e Darius Milhaud, 1918

Recordando seu período no Rio de Janeiro, Darius Milhaud escreveu:

Na entrada de cinemas (isso naturalmente foi na época dos filmes mudos) havia sempre uma pequena orquestra tocando. Um dos compositores mais famosos de música popular naquela época, Nazareth, autor de inúmeras canções e danças que faziam extremo sucesso em muitos carnavais, costumava tocar piano em frente ao cinema da Avenida Rio Branco. Eu costumava ficar horas ouvindo-o tocar. E foi só depois de muitos meses que eu senti aqueles ritmos entrarem claramente em mim.

Nazareth foi o compositor de música popular brasileira que mais impressionou Milhaud. É apropriado, então, que a última melodia citada em Le Boeuf sur le Toit tenha sido composta por ele.


Cavaquinista (detalhe de
"Chorinho" de Portinari)

Melodia No. 28: “Apanhei-te, Cavaquinho” (1915)

Dentre as composições de Nazareth, a polca “Apanhei-te, Cavaquinho” perde em segundo lugar apenas para “Odeon” em número de gravações. É também a música mais gravada entre as 28 citadas em Le Boeuf. Alexandre Dias, que mantém registro de todas as composições do Nazareth, listou 62 gravações de “Apanhei-te, Cavaquinho” (desde então ele achou mais 40 gravações) em um texto abrangente escrito em setembro de 2001, do qual os seguintes petiscos foram extraídos.

Por que um pianista entitularia uma de suas peças “Apanhei-te, Cavaquinho”? Segundo o biógrafo de Nazareth, Luiz Antônio de Almeida, o compositor estava imitando o som do cavaquinho no acompanhamento da mão esquerda e o da flauta na melodia tocada pela mão direita.

Nazareth nunca quis que o “Apanhei-te, Cavaquinho” fosse tocado de modo tão rápido como é executado pela maioria dos músicos. Em um vídeo (trecho de Lição de Piano) incluído no CD-ROM Ernesto Nazareth, Rei do Choro, o compositor Francisco Mignone recordou:

Conheci Nazareth mais ou menos em 1917. Foi na casa de música Eduardo Souto. Ernesto Nazareth havia sido contratado para tocar ao piano obras que os fregueses desejavam comprar. [...] E tocava tudo devagar, procurando sempre cantar. [...] Aliás ele dizia, “Toda a minha música é estropiada. Eles tocam tão depressa. O ‘Apanhei-te, Cavaquinho’ é um desastre. Ele é bem devagar, arpejando a mão esquerda, dando a impressão de cavaquinho.” Ele tocava tudo lento, e bem claro, com uma técnica bem apurada.

Alexandre Dias atribui o modo rápido de tocar à estrutura da música, que oferece uma oportunidade irresistível para músicos que querem exibir sua virtuosidade. Como “Ameno Resedá”, e diferente de todas as outras composições de Nazareth, “Apanhei-te, Cavaquinho” é quase inteiramente composto de colcheias na mão direita; o intérprete imediatamente vê a possibilidade de tocá-las rápido, devido à sua regularidade. Como mais um culpado, Dias cita um concurso de velocidade para o “Apanhei-te, Cavaquinho” promovido pela Rede Globo nos anos 70.

É interessante notar que Nazareth já reclamava da velocidade em 1917, enquanto que, na edição da partitura editada em 1926 pela Irmãos Vitale, o “celebre chôro” (não mais chamado de polca, por questões relacionadas à moda) ainda vem com a recomendação “Muito proprio para serenata.”.


Ernesto Nazareth

“Apanhei-te, Cavaquinho” é a última música em Le Boeuf sur le Toit, embora ela não seja a última a ser ouvida:

Recapitulação

Rondó 13
1. “São Paulo Futuro” (parte A) + “Galhofeira
2. “São Paulo Futuro” (parte B)
Rondó 14
1. “Sou Batuta
2. “Tango Brasileiro” (parte A)

Coda

Rondó 15 + “Apanhei-te, Cavaquinho”
1. “Tango Brasileiro” (parte A)

Tocado pelas flautas e obscurecido pelos metais do tema do rondó, “Apanhei-te, Cavaquinho” é bastante inaudível na maioria das gravações orquestrais. Portanto, nós iremos dispensar a gravação de Louis de Froment e ouviremos, ao invés, uma versão para piano a quatro mãos tocada por Stephen Coombs e Artur Pizarro.

Como um brinde especial, nós temos um trecho da gravação original tocada pelo próprio Nazareth em uma gravação (Odeon 10718-A) que ele fez no dia 10 de setembro de 1930.


Cortesia de Alexandre Dias

Ao longo dos anos, a música ganhou quatro letras. A primeira, escrita por Hubaldo Maurício ou Báldoman (talvez a mesma pessoa) e incluída nas partituras editadas pela Mangione. Esta versnão foi gravada duas vezes: por Lica Cecato e Stefano Scutari no disco Our Favorite Songs (1992), and pela cantora italiana Lucia Minetti no disco Luz (2005).

Apanhei-te, Cavaquinho!
(Ernesto Nazareth/Hubaldo Maurício ou Báldoman)

Um cavaquinho, cabecinha pequenina, no formato d'um oitinho,
De boquinha redondinha, de pescoço compridinho, orelhinha cravelhinha
De madeira o terninho, gravatinha de cordinha, falou:
Sou miudinho, tenho quatro "cordazinha", mas dou vida ao chorinho,
Sou o molho do sambinha! "Seu" pandeiro, cuidadinho!...
Tome tento, ó flautinha!... "Seu" piano, diga ao pinho: cavaquinho já chegou!

Ó cavaquinho malcriado, deu o brado, indignado, o piano:
Seu mesclado, sem teclado, vilão!
Ó cavaquinho, te arrebento, seu rebento de instrumento, ruge o pinho.
Seu safado, mascarado, não!
A dona flauta, com a prata mais vermelha que centelha,
Num trinado, engasgado, disse apenas: bufão!
"Seu" pandeiro, vibra o guizo ao cavaco
Facão, eu te bato, eu te piso, seu tustão!

O cavaquinho envergonhado deu no pé, pé, pé, aprendeu a lição, ão, ão.
Que não se brinca em seresta, nem se ofende ninguém!...
Que não se zomba do mais velho, também!
Mas cavaquinho arrependido voltou lá, lá, lá,
E pediu pra ficar, ar, ar, e, humilde, aprendeu, eu, eu
A respeitar os do lugar! Ah!"

A segunda versão foi gravada por Ademilde Fonseca em 1943:

Apanhei-te, Cavaquinho!
(Ernesto Nazareth/Darci de Oliveira/Benedito Lacerda)

Inda me lembro
Do meu tempo de criança
Quando entrava uma dança
Toda cheia de esperança
De chinelinha e de trança
Com Mané José da França
Nunca tive na lembrança
De rever este chorinho
E hoje ouvindo
Neste choro a voz do pinho
Relembrando o bom tempinho
Da mamãe e do maninho
Hoje sou ave sem ninho
Sem família, sem carinho
Mas sou bem feliz ouvindo
O "Apanhei-te, Cavaquinho"

Hoje cantando
O "Apanhei-te, Cavaquinho"
Fico louca, fico quente
Fico como passarinho
Sinto vontade
de cantar a vida inteira
E esta vida
Eu levo de qualquer maneira
Ouvindo a flauta
O cavaquinho, o violão
Eu sinto que o meu coração
Tem a cadência de um pandeiro
Esqueço tudo
E vou cantando o ano inteiro
Este chorinho
Que é muito brasileiro

Não satisfeita com nenhuma das duas primeiras versões, Nara Leão escreveu uma terceira, que ela gravou no álbum de 1969 Coisas do Mundo.

Apanhei-te, Cavaquinho!
(Ernesto Nazareth/Nara Leão)

Com esse chorinho, o "Apanhei-te, Cavaquinho"
Meu piano tão certinho vai seguindo seu caminho
E a viola na calçada vai ficando encabulada,
Vai tentando, vai tocando, mas tão longe do chorinho

E sendo assim eu vou tocando à minha moda
Nem te ligo não dou bola, nem escuto essa viola
Vou seguindo em desparada nessa noite enluarada Preparei-te uma surpresa e apanhei-te cavaquinho!

Um choro que cantava só saudades, tristezas, temores
Hoje não sabe o que é viver a vida, esqueceu-se dos amores
Eu acho graça ao ver alguém lá fora, sofrer e a chorar
Hoje nada ele consegue, nem sequer me acompanhar

E o meu chorinho vai seguindo seu caminho,
Caminhando de mansinho, o "Apanhei-te, Cavaquinho"
E o piano ele é sabido, e o piano é meu amigo,
Mais esperto, inteligente que qualquer violãozinho

E sendo assim eu vou tocando à minha moda
Nem te ligo não dou bola, nem escuto essa viola
Vou andando desparado, vou na frente e sozinho,
Desta vez eu te apanhei mas apanhei-te, cavaquinho!

Anda depressa pode ser que me apanhe
E que ainda me acompanhe
Nessa dança que eu marco o passo,
E que vou variando o compasso
E copiando ele quer ver como é que eu faço
Vai tentando aprender
Como tocar um bom chorinho
Mas te apanhei, meu cavaquinho

E o meu chorinho vai seguindo seu caminho,
Caminhando de mansinho, o "Apanhei-te, Cavaquinho"
Vai andando desparado, vai na frente vai sozinho,
Desta vez eu te apanhei mas apanhei-te, cavaquinho!

Em 2001, Paulinho Garcia, músico brasileiro radicado nos EUA, escreveu letra para a parte A, que ele gravou com os flautistas Altamiro Carrilho e Julie Koidin no CD Juntos. Os versos de Garcia são carregados de saudades dos velhos tempos em sua terra natal.

Apanhei-te, Cavaquinho!
(Ernesto Nazareth/Paulinho Garcia)

Primeira parte:
Esse Chorinho que hoje todo emocionado
Com o coração apertado eu escuto novamente
Numa forma diferente ele vem trazer de novo
A saudade do meu povo, aquela gente que eu nunca esqueci.

Inda criança apanhei-te, cavaquinho
E entre sambas e chorinhos eu deixava minha mente
Viajar devagarinho outras terras e outras gentes
E a saudade era somente uma rima em um samba cancão.

[Instrumental]

Encerramento:
Já não existe o boteco da esquina
E o samba e o chorinho encontraram novas rimas
E o mundo é diferente e a saudade é diferente
Ou quem sabe simplesmente o que é diferente aqui sou eu.

O que não muda é este coração Brasileiro
Que ouve cheio de alegria o chorinho verdadeiro
Que a flauta do maestro Altamiro agora traz
Lembranças e saudades do meus tempos bons em Minas Gerais.

 

 

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