:: Esta entrevista foi concedida para meu artigo sobre
:: Acari Records que saiu em inglês na revista Brazzil


 

Luciana Rabello

A cavaquinista fala de sua vida e música.

Daniella Thompson

Abril de 2000

Minha família, minha origem

Nasci numa família do nordeste do Brasil, descendentes de espanhóis, holandeses, alemães, portugueses, índios e negros. Uma típica família brasileira... Pelo lado paterno, os membros dessa família eram dedicados, na sua maioria, à farmacia (fórmulas, comércio, indústria farmacêutica, etc.). Alguns advogados e poucos músicos. Entre esses poucos, meu avô. Boêmio, violonista. Não o conheci. Chamava-se Flaviano Lins Rabello. Pelo lado materno, uma família toda de repentistas e músicos. Otacílio Baptista é o mais famoso dos repentistas da família. Há muitos outros. Meu avô, José de Queiroz Baptista, era professor de música, violonista e chorão. Morávamos na mesma casa e ele foi meu primeiro (e único) professor, como é tradição na família. Aprende-se em casa. Todos os Baptista eram auto-didatas, como eu sou. Eram letrados, falavam muitas vezes mais de um idioma, mas em geral não tinham estudo acadêmico. Com este avô comecei a aprender violão, aos 6 anos.

Que música eu ouvia na minha infância

Muito choro, muita música nordestina e folclórica, muito samba e música erudita.

Os Carioquinhas

O conjunto foi formado em 1975 por iniciativa de Raphael Rabello e de Luciana Rabello. A gente já tocava desde muito pequenos. Eu comecei tocando violão, aos 6 anos, e estudei 5 anos de piano clássico, e Rapahel foi sempre o violão. Nosso avô materno era violonista de choro e ensinou as primeiras notas a todos os netos que se interessaram. Choro para nós não era novidade, pois fomos criados nesse ambiente. Mas não tínhamos amigos da nossa idade que gostassem desse tipo de música. Éramos considerados uns “ETs”. Choro era coisa de velho... Em 1975, conhecemos o conjunto recém-formado, o Galo Preto. Raphael tinha 12 anos e eu 14. Ficamos amigos e começamos a freqüentar as rodas de choro da casa do Afonso Machado -- bandolinista e líder do grupo. Eu ia tocando violão, não tocava cavaquinho ainda. Raphael conheceu o Déo Rian, bandolim do Época de Ouro, que ficou impressionado com ele e mandou que ele fosse ser aluno do Meira, o grande mestre do violão que tocou no Regional do Canhoto e foi mestre do Baden Powell. Além das aulas do Meira, eu e meu irmão passávamos horas tocando com os discos de choro, imitando e aprendendo com as gravações dos mestres, sobretudo do Regional do Canhoto e do Jacob do Bandolim. Ficamos com a idéia fixa de fazer um conjunto. Conhecemos o Paulinho do Bandolim, o Théo (violão de 6), e o Mário (pandeiro). Faltava o cavaquinho. Raphael, sem a menor cerimônia, pediu que eu deixasse o violão de lado e tocasse o cavaquinho para poder formar o grupo, pois não tinha mais ninguém [riso]. Grande decisão de um visionário...

Começamos então a ser convidados para várias reuniões de música onde conhecemos todos os nossos ídolos do choro: Dino, Canhoto, Altamiro, Waldir Azevedo, Abel Ferreira. Todos foram muito carinhosos e nos “adotaram”, cercando de carinho e conselhos. Muitos se emocionavam ao nos ver tocar, pois o Choro era mesmo coisa de velhos e parecia que acabaria com eles. Na casa do Meira, Rapahel conheceu o Mauricio Carrilho, que também era aluno do Meira. A aproximação foi inevitável e Mauricio entrou para o conjunto no lugar do Théo. Conhecemos o clarinetista Celso Cruz e o Celsinho do Pandeiro, que também se juntou a nós.

Numa roda de choro conhecemos Lygia Santos, filha do lendário Donga, que nos encaminhou no primeiro trabalho profissional. O grupo não tinha nome. Lygia ficou muito entusiasmada, chorava todas as vezes que nos ouvia. A gente não entendia bem... Ela trabalhava num órgão oficial de cultura do Rio de Janeiro, e nos levou até seu chefe, o comandante Martinho, que tambem ficou impressionado com aqueles meninos e resolveu nos dar trabalho. O primeiro trabalho profissional. Era o ano de 1976, e lembro da corrida de todos para tirar carteira da Ordem dos Músicos, etc. Nosso primeiro show foi nesse mesmo ano, na Quadra da Escola de Samba Mangueira, onde tocamos no mesmo show que tocou o Época de Ouro, o Waldir Azevedo, o Copinha e o Quinteto Villa-Lobos. O nome foi dado pelo próprio Comandante Martinho—Os Carioquinhas.

A partir daí, recebemos vários convites de gravadoras para gravar discos. Todos queriam explorar a imagem dos “meninos prodígios”, mas nenhuma delas estava interessada em Choro. Queriam que a gente gravasse Rock em ritmo de Choro. Imagina... Acabamos gravando pela Som Livre, pois foi aonde tivemos a melhor proposta. Conseguimos gravar o repertório que queríamos e ela nos prometeu uma boa divulgação pela TV Globo, etc., que claro que não aconteceu. No estúdio onde estávamos gravando esse disco, conhecemos o maestro Radamés [Gnattali], que gostou muito do grupo e mandou que estudássemos harmonia. Ficou muito impressionado com Raphael, como todos ficavam. Ganhamos projeção a partir de então, e muitos trabalhos apareceram. Mas, brigávamos muito. Afinal, éramos adolescentes, quase normais [riso].

Quando as brigas chegaram no limite (1978), o conjunto acabou. Sabendo disso, Joel Nascimento nos convidou para tocar a suíte “Retratos” para bandolim e orquestra do Radamés Gnattali, que ele havia pedido ao próprio Radamés uma versão para bandolim e pequeno conjunto, aconselhado por Raphael. Radamés escreveu a versão, mas disse que aquilo não ia ficar bom... Ele não acreditava que um conjunto de choro desse conta. Joel pegou então a base dos Carioquinhas e começamos a ensaiar. Ensaiamos o concerto e fomos apresentá-lo ao maestro na festa de aniversário dele, em 27 de janeiro de 79. Radamés ficou entusiasmado e resolveu escrever outros arranjos para o grupo e ele próprio disse que queria tocar com aquela formação. Hermínio Bello de Carvalho estava nessa festa e organizou aquilo que ele viu acontecer na sua frente. Criou-se assim, a Camerata Carioca, que batizada e impulsionada profissionalmente pelo Hermínio, estreou para o público em agosto de 1979 num belo show chamado Tributo a Jacob, que tambem foi gravado em estúdio.

Porque fiquei pouco tempo na Camerata Carioca

Fiz parte da primeira formação da Camerata Carioca, que na verdade era a base do conjunto Os Carioquinhas—Eu, Rapahel, Mauricio e Celsinho—acrescido do Joel e do João Pedro Borges (violão de 6 cordas). Era preciso mais um violão para executar os arranjos encomendados ao Radamés.

Saí por vários motivos, mas o mais importante era que havia cumprido meu tempo naquele trabalho. Não concordava com muitos pontos de vista da maioria do grupo, e saímos juntos—eu, meu irmão e Celsinho Silva. Eu precisava caminhar sozinha. E foi o que fiz.

O que fiz depois da Camerata

Trabalhei com muitos cantores e como solista em alguns projetos. Trabalhei com Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola, Francis Hime, Chico Buarque, Martinho da Vila, Baden Powell, Toquinho, Copinha, Abel Ferreira, e mais uma dezena de outros artistas, como músico de estúdio e, algumas vezes, de shows. Viajei para Europa em 2 tournées de 3 meses de duração cada uma, durante dois anos seguidos (1981 e 82). Recebi muitas propostas para gravar disco solo, tanto no Brasil como na Europa, mas não assinei nenhum. Os interessados queriam que eu gravasse o óbvio: “Brasileirinho”, “Tico-Tico no Fubá”, “Doce de Côco”, etc. Não me interessei e preferi seguir outro caminho que, anos mais tarde, veio ser a Acari. As gravadoras tinham interesse em explorar o fato de ser uma mulher tocando cavaquinho, dando um enfoque quase sensual ao meu trabalho. Sempre achei isso ridículo, e não aceitei as propostas financeiramente tentadoras. Em 1985 me casei com Paulo Cesar Pinheiro, com quem tenho 2 filhos. Dei um breve intervalo na vida profissional para o nascimento das crianças e durante a primeira infância de ambos, que nasceram em 85 e 87, respectivamente—Ana e Julião.

Quando comecei a compor

Desde os 13 anos aproximadamente. Mas, só tive coragem de mostrar minhas músicas aos 16/17. Ganhei maior confiança bem mais tarde. As primeiras composições foram esquecidas.

Minhas colaborações com Cristovão Bastos

Conheci o Cristovão há mais de 20 anos (1978–79). Ele tocava com o Paulinho da Viola e nós gravamos juntos algumas vezes. Em 79–80, trabalhamos num disco da Cristina Buarque e em seguida num show dela com Elton Medeiros, no Teatro Clara Nunes, no Rio. Cristovão não tinha piano em casa, e costumava chegar muito cedo no teatro para estudar/tocar. Ele pedia que eu chegasse mais cedo pra gente aproveitar o piano. Cristovão já ia muito na minha casa e não sei explicar como, mas ficamos “velhos amigos” muito rápido. Mas, eu tambem não tinha piano, e ele tocava violão nessas vindas à minha casa. Não precisávamos falar muito nem pra nos comunicar nem pra tocar. A partir daí todas as vezes que ele precisava de cavaquinho nos seus arranjos, mandava me chamar. Até hoje é assim.

Eu, Raphael e Amelia morávamos juntos e na nossa casa (como até hoje) a música mandava. A gente tocava/ouvia quase o tempo todo. Éramos muito alegres também. Ríamos muito, à toa, o tempo todo. Não sei de quê, pois as dificuldades eram muitas ($$)... Mas, o ambiente era cheio de vida. Todos os amigos gostavam de vir à nossa casa. Lembro do Luizão Maia, do Wilson das Neves, do Guinga (este por pouco tempo). Mas Cristovão era o mais presente. Chegava sem precisar marcar. Depois que Raphael se casou (81), eu e Amélia mudamos para um apartamento menor, e ele continuou vindo sempre. Tomávamos muito chá de boldo (planta medicinal brasileira usada para os males do fígado/digestão), e não bebida alcóolica (estranho isso...). O bom humor era contagiante.

O “assunto” principal era tocar. Não sei explicar o processo de fazer música, mas é sempre muito fácil. É só começar a tocar que aparecem as idéias. Às vezes dele, às vezes minha. A primeira música que fizemos foi “Queixa Antiga” (está no meu disco). O Cristovão tinha a primeira parte pronta há anos, e não saía a segunda. Ele me mostrou e a segunda parte saiu de uma vez, inteira. Ficamos animados e fizemos várias. As outras misturadas: todas as partes juntos, como numa conversa, onde um responde a frase do outro.

Até hoje é muito prazeroso tocar com Cristovão. É a mesma sintonia que tenho com Mauricio Carrilho e que tinha com meu irmão Raphael. Amelia e Cristovão namoraram, se casaram e em 95 nasceu o filho deles—Miguel, que é afilhado meu e do meu marido. Eles não estão mais casados, mas continuam amigos.

Eu e Cristovão não temos mais tempo pra passar aquelas tardes todas tocando, infelizmente. Mas, sempre que nos encontramos a sintonia se apresenta. Se tivéssemos mais tempo... Gosto muito desse amigo e tenho poucas oportunidades de falar dele. E ainda não falei nem a metade.

Minhas maiores influências musicais

No meu instrumento, os mestres Canhoto (por quem fui apontada como sucessora) e o Jonas, cavaquinho do Época de Ouro e o preferido do Jacob do Bandolim. Passava horas intermináveis tocando junto com os discos que tinham gravações de ambos, até conseguir tocar igual... Todos começamos imitando alguém a quem admiramos e depois vamos traçando nosso próprio caminho. Não há jeito de ser diferente. Graças a Deus, eu soube escolher bem a quem imitar [risos]. Melhor ainda foi ouvir isso do próprio Canhoto. O que acontece, é que ele era uma pessoa que tinha um modo muito próprio de definir/explicar as coisas. Acho linda a maneira que ele encontrou de me dar força. Ele dizia: “Garota, você é quem melhor me imita!” Sim, porque muitos tentavam imitar o Canhoto, o que é de se esperar que aconteça com um mestre como ele, que criou uma escola de cavaquinho de acompanhamento. O mesmo aconteceu (acontece) com o Dino, com o grande Meira, com o Jorginho do Pandeiro, com o Jacob do Bandolim e com alguns outros monstros sagrados que acabam virando mesmo referência do seu próprio instrumento. Isso é prova de competência. Mas o Canhoto não era tão auto-referente assim... No meu caso, ele ficava feliz de me ver aprendendo com ele. Hoje entendo o que ele sentiu. Começo a sentir também. É uma necessidade de ver o trabalho, ao qual dedicamos a vida toda, ter continuidade. Isso dá ânimo e muita alegria.

O Jonas me abençoou de outra forma: compôs um choro delicioso—o “Manga Rosa”—e me dedicou. Este choro está gravado nesse meu disco lançado nesta primeira safra da Acari Records. Tive o aval dos dois cavaquinistas que mais admiro, e que foram as grandes referências no meu aprendizado como autodidata. Fico muito feliz, claro, mas isso também significa muita responsabilidade.

Como influência musical de modo geral, muitos outros e de formas diferentes. Ouvia e ainda ouço muito: Dos brasileiros—Ataulpho Alves, Geraldo Pereira, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Noel Rosa, Tom Jobim, Francis Hime, Elizeth Cardoso, Vadico, Moacir Santos, Custódio Mesquita, Cartola, Nelson Cavaquinho, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Canhoto da Paraíba, Radamés Ganattali, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus. A bossa-nova passou por mim sem eu perceber. Ela surgiu em fins dos anos 50 e eu nasci em 61. Comecei a tocar profissionalmente em 76. Nunca gostei de bossa-nova. Não me diz nada até hoje. Gosto das matrizes.

Dos estrangeiros: Astor Piazzola, Segóvia, Gershwin, Bill Evans, Billie Holiday. Dos eruditos: Chopin, Brahms, Bach. Os grandes mestres. Estudei 5 anos de piano acadêmico. Não me serviu de nada como instrumentista, mas me ensinou a ouvir os mestres.

Como surgiu a idéia da Acari

Surgiu depois da idéia de construirmos um estúdio. Depois dele pronto, eu e Mauricio, que fomos os maiores investidores do estúdio, pensamos no que faríamos com os discos gravados lá. As gravadoras continuam sem interesse por esse tipo de material, mas sabemos que há um bom público pro Choro. Resolvemos dar um passo maior, e fizemos a Acari Records.

Que músicas mais gosto do meu disco

Todas. Mas, “De Bem Com a Vida”, “Velhos Chorões”, “Flor de Sapucaia”, “Queixa Antiga”... Não dá, são todas [riso].

O que eu penso sobre o futuro do Choro

Não penso. Eu faço [riso]. Acho que depende de nós músicos e de empreendimentos como a Acari, por exemplo.

 

Depoimentos


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