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:: revista Daniella Thompson on Brazil.


 

Paulo Baiano em Tempo Algum

O compositor descreve o disco
que fez com Clara Sandroni.

Daniella Thompson

19 de março 2002

Após o lançamento de Caracane, o CD de Marcos Sacramento com muitas composições minhas, eu quis gravar um disco-solo, onde pudesse ter total controle sobre arranjos, gravação, repertório, etc. Mas eu não queria gravar um disco com muitos cantores, nem um com eu cantando tudo (não me sentia seguro). Então, chamei a Clara Sandroni que, na minha opinião, tem uma das mais belas e emocionantes vozes da nossa geração. Já havíamos feito alguns shows em 1998, com muito sucesso—as pessoas ficavam emocionadas e surpresas.

Escolhemos o repertório a partir da voz de Clara, e privilegiamos as canções mais acústicas, com harmonias e melodias sofisticadas, e letras densas (já que, em Caracane, Marcos havia privilegiado os sambas de nossa autoria).

Chamei Carlos Fuchs para produzir. Primeiro, fizemos duas sessões ao vivo durante um fim de semana inteiro, na casa do pai dele, onde está o piano Yamaha de cauda. A idéia era aproveitar o máximo destas gravações. Deu para usar todos os pianos, alguns baixos, percussão e guitarra. Depois, ao longo de quase dois anos, acrescentamos coisas, regravamos faixas, completamos os arranjos e, finalmente, Clara colocou voz. Neste meio caminho, duas músicas não ficaram boas e uma delas foi substituída por “Formidável”, com eu cantando. (Gostei. Já estou pensando em gravar um disco inteiro como cantor.)

Como posso definir minha música? É brasileira, carioca, traduz meu passado de garoto suburbano, ex-hippie, jornalista, curioso, informado. É também resultado das informações musicais que apreendi, de forma autodidata, ao longo da vida (não se esqueça que, como brasileiro e carioca, vivo no lugar mais musical do mundo). Não é uma música careta: busco sempre a novidade, a originalidade e a surpresa, fugindo do hermetismo e da pretensão. É uma música autodidata: pouco estudei teoria musical, escrevo partituras mal, não sou um pianista virtuose. Tenho é muita cara de pau (o que me dá uma certa liberdade) e muita curiosidade, o que me faz estar sempre aprendendo e apreendendo algo, seja deste grupo brilhante de amigos músicos que me cercam, seja dos discos que ouço, dos filmes que vejo.

Quanto às faixas:

1. Lilita—Marcos Sacramento é meu mais antigo e eficiente parceiro. Acho que desenvolvemos, ao longo de mais de vinte anos de trabalho e amizade, uma química musical que, às vezes, sinto falta em outros parceiros. Suas letras são muito originais, muito brasileiras, e sugerem caminhos musicais sempre imprevisíveis, novos, e eu gosto muito disso. Lilita é o nome de uma tia dele, que morava em frente à casa dele, no Fonseca. Eu cheguei a conhecê-la. Era uma adorável maluca, que incorporava Oxum-apará. Ou seja: a letra é um fato real.

Bem, trata-se de um samba-jongo, já lançado em Caracane. Eu quis fazer um arranjo inspirado nos conjuntos regionais de choro, e chamei Rodrigo Campello para tocar os violões, junto com pandeiros e percussões. É uma música que “pede licença” aos santos, para que o resto do disco corra bem e feliz.

2. Vinte Um—Suely Mesquita é uma outra grande amiga e grande parceira. Diferentemente de Sacramento, que é um poeta muito intuitivo, Suely é uma letrista, escreve letras já pensando na música. Escreve muito, em quantidade e qualidade. Escreve sobre muitas coisas, assuntos, idéias. Temos músicas sobre diversos temas, que geram canções completamente diferentes umas das outras.

“Vinte Um” é uma letra que fala sobre o espaço da cultura nacional, neste mundo globalizado. Para emoldurar esta letra, compus um maracatu atômico. No disco, editei sons dos cantores e artistas do mundo inteiro, que se apresentam nas galerias escuras do metrô de Nova Iorque (gravados por Suely num gravador cassete) e vocalises do Jorge Babalaô, gravados há vinte anos atrás no terreiro do Tambor de Mina da Madre de Deus, em São Luís do Maranhão. Para mim, estas gravações traduzem o conceito da letra desta música, cosmopolita: e onde fica o nacional, onde fica o racial, onde fica a diferença? Fica tudo nos sinais de nascença.

3. Uma Outra Aquarela—Engraçado, eu sou jornalista, escrevo até bem, mas não sou poeta, não consigo escrever letras de música com o talento e a eficiência de meus parceiros. A letra de “Uma Outra Aquarela”, escrita por mim, é na verdade a edição de um press release que escrevi pro grupo Aquarela Carioca. É uma viagem pelo disco Contos, que, na verdade, é um passeio por uma cidade secreta e proibida, algum Macondo perdido nos confins da América do Sul. O arranjo transformou-a numa espécie de salsa, ou bolero, sei lá, algo que lembra velhos navios, mares do Caribe. Destaque para o violoncello de Lui Coimbra (ex-membro do Aquarela Carioca).

4. Espelhado—Como Elismaníaco que sou, conheço Sergio Natureza desde 1980, quando Elis gravou “As Aparências Enganam”. Conheci Sergio pessoalmente através do Sacra. Ficamos amigos e o ajudei a editar um livro de poesias, com sua obra quase completa. Claro que, com todas aquelas maravilhas no meu computador, não deu outra: algumas delas transformei em música. Sergio também é, mais que poeta, letrista. Suas poesias já vem com a forma musical pronta, o que facilita a vida do compositor.

Desde que olhei a letra pela primeira vez, senti que “Espelhado” seria um fado, melancólico e belo. A participação primorosa de Rodrigo Campello—com violão de sete cordas e cavaquinhos emulando guitarras portuguesas—transformou a música num fado-chorinho, unindo os dois lados do oceano num só lamento de amor. Para mim, é uma das mais belas faixas do disco, e uma das canções que melhor se casam à voz de Clara.

5. Jesus—Outra letra genial de Sacra, fala de um Jesus profano e cheio de tesão, saindo lambido d’água para distribuir amor aos homens. A música já havia sido gravada por Ryta de Cassia e Carlos Fuchs, num arranjo poderoso. Eu quis fazer mais simples, como um chorinho nostálgico e leve, centrado no violão do Daniel Tochtermann e no piano dedilhado d’eu mesmo.

6. Esvoaça—Ana Cristina César é uma poeta da minha geração, talentosíssima e muito angustiada, que certo dia pulou pela janela de seu apartamento em Copacabana. Quem me apresentou a sua poesia foi a Angela de Almeida. Logo me interessei por “Esvoaça”, escrito por Ana C. quando ela tinha apenas dez anos de idade!

Compus uma valsa singela, que logo foi apropriada por Clara. Na verdade, esta música foi o que nos juntou musicalmente, e é o embrião de todo o projeto que resultou no disco. Também acho esta música a cara de Clara Sandroni. Tanto que, no disco, ficamos só nós, eu e ela, piano e voz.

É como a vela que se apaga,
e a fumaça sobe e se atenua.
É o amor fraco que se apaga,
não adiantam poemas p'ra lua.
Sofre o homem, o amor acaba,
e a doce influência esvoaça,
como o fio adelgaçado
de fina e translúcida fumaca.

Esvoaça, esvoaça,
atenua o amor,
atenua a fumaca.

Pra que tanta dor,
se o amor que vai sumindo
adelgaça,
esvoaça, esvoaça, esvoaça...

7. Os Faróis—É outra daquelas letras loucas do Sacramento, um baladão antigo, ainda do tempo do Cão Sem Dono. Aqui, optamos por criar um clima completamente jazz, que valorizasse a harmonia e a melodia ascendente da canção. Para isto, o destaque fica com o baixo fretless de Ênio Santos e o trombone genial do Roberto Marques, que toca no Pagode Jazz Sardinha’s Club.

8. Formidável—Trata-se de um samba-rap engraçado, porque a letra da Suely é toda composta por termos antigos "que eram ditos por nossas avós". No estúdio, tiramos a coleira do Rodrigo Campello, que criou arranjos na hora para as linhas de violão, e eu cometi a voz em cima. A faixa é uma brincadeira, um refresco para os ouvidos do ouvinte, após os dramas de amor de “Esvoaça” e “Os Faróis”.

9. Silencioso—Uma homenagem louca e zangada de Sergio Natureza ao mestre maior, João Gilberto. A letra é completamente radical: doente é a cabeça das pessoas, é a vida destes milhões de a toa, querendo fazer dele o seu escudo e por aí vai. Pois resolvi, no contraste, escrever uma música bem suave e bela, uma bossa-nova clássica com linha de flauta e baixo acústico, onde Clara pudesse dizer, da forma mais suave possível, todas as barbaridades da letra.

Ah! como hoje entendo João Gilberto
não pode o coração ser cofre aberto
que chegam, metem a mão e tiram tudo

Pois ele que eles tacham de doente
sofre do mal de ser inteligente
e preservar a mente, o conteúdo

Doente é a cabeça das pessoas
é a vida desses milhões de à toa
querendo fazer dele seu escudo

Pra esses ele simplesmente some
não fica nada à vista, só o nome
e o homem conscientemente mudo

Não seja o mito, o ídolo, a legenda
mas muito mais o homem, sua senda
o torto seguindo o Caminho Reto

Porque por mais que falem, que comentem
é ele quem reinventa o que eles sentem.
Um homem verdadeiro. Vive quieto.

10. Sinfonia dos Inversos—Márcio Ferreira é um amigo antigo, meu e do Roberto Machado. Fizemos apenas uma música juntos, que chegou ao CD (para ciúmes do Roberto). A poesia tem a forma clássica de um soneto, que me inspirou a escrever um fado, com ares ibéricos e mouros, simbolizados pela linha de guitarra e sax. É um fado meio progressivo, apocalíptico, que faz o maior sucesso nos shows.

11. Jesus É Preto—Um outro sambinha moleque, cujo maior destaque é a letra genial do Sacra (ele diz que é verdade: certa madrugada ele conheceu um crioulão bêbado num bar, que lhe disse que se chamava Jesus). Bem, o arranjo começa com um solo de trombone de gafieira do Roberto Marques, e descamba para um coral meio bêbado. É praticamente o fechamento do disco, remetendo novamente para o conceito da raiz cultural: o samba de botequim, sujo e desarrumado, contando uma improvável história de iluminação mística!

12. Tempo Algum—quase uma vinheta, é uma valsa impressionista para emoldurar a letra etérea e abstrata deste grande poeta que é Marcos Sacramento. Somente piano e voz, poucas notas, poucos sons.

 

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