A Bicharada passeava cantando músicas
que ‘Seu’ Lobo fazia

Jota Efegê

O Jornal, 22 de agosto, 1965


Haroldo Lobo numa caricatura de Claudio Sendin
(Veja, 21 de junho, 1995)

A morte de Haroldo Lobo na plenitude de sua carreira musical, capaz ainda de contribuir para a animação dos festejos carnavalescos com bem ‘boladas’ produções de amplo sentido popular, foi inegavelmente grande perda. Provocou, portanto, como seria de esperar, não só o lamento de toda a imprensa que vinha registrando os consecutivos sucessos do votorioso compositor mas também, em decorrência, a enumeração de sua vultosa bagagem. Relembrou-se, assim, e por dever de justiça um punhado de sambas e marchinhas que a cidade cantou e até hoje os recorda em letra e melodia.

Passou, porém, desapercebido para os biógrafos momentâneos do saudoso musicista — embora alguns a ele se referissem em simples citação acidental — o Bloco da Bicharada, cortejo zoológico-carnavalesco criado por Haroldo Lobo. Tendo já firmado tradição no bairro da Gávea, onde há mais de vinte anos desfila por suas ruas proincipais nas noites da ‘semana magra’ (como os carnavalescos denominam a que antecede a do reinado de Momo), faz jus a um relato relembrando sua origem e continuidade. Ao mesmo tempo que se mostrará a correlação das músicas do saudoso compositor com o referido bloco, pois em tais passeatas era feito o lançamento delas testando seu agrado e receptividade.

Sugestão do antigo Carnaval

Nos velhos carnavais do ‘tempo da coroa’, cojus moldes ainda foram observados nos primeiros anos da República, os ranchos, ternos e cordões de então, assims como os grupamentos similares, eram sempre precedidos de um bicho qualquer. Feitos de papelão e em dimensões avantajadas, tinham, afora o sntido totêmico observado pelos folkloristas (Arthur Ramos, Edison Carneiro), o de simples alegoria. Mais tarde, evoluindo os festejos carnavalescos, uma tosca ‘burrinha’ ficou sendo o representativo dessa tradição. No Carnaval de agora, com escolas de samba faustosas, tudo é diferente, inovado. Bichos só figuram nos cortejos se estiverem implícitos no enredo apresentado.

Inspirado ou não pelo que viu nos carnavais de sua meninice, ali mesmo na Gávea onde nasceu, ou de outros locais da cidade, Haroldo Lobo resolveu fazer o Bloco da Bicharada. Uma noite, no Carioca Esporte Clube, onde sempre ia para o bate-papo costumeiro com os consócios da agremiação à qual ele se dedicou com grande carinho e beio a merecer por isso o título de grande benmérito, expôs sua idéia. Humberto Matera, Floravante Garibaldi, Vadinho Lino, Bononi, Cabreira da Costa e mais alguns acharam-na esplêndida e na mesma hora deram seu apoio com uma exclamação uníssona “Oba! Vai ser um abafa!”. Acertaram também, no entusiasmo reinante, o início da confecção dos ‘animaizinhos,’ que deveriam ser grandes e vistosos.


A casa na Rua Jardim Botânico 750, onde o Bloco da Bicharada fabricava e armazenava seus bichos de papelão. (foto por cortesia de Carlos Monte)

Um zôo de papelão desfila na Gávea

Em 1939, logo em janeiro, num improvisado ateliê (os carnavalescos chamam ‘barracão’) Lino e outros que se prontificaram a auxiliá-lo começaram os trabalhos de ‘pasta’. Manipulando a argamassa de goma e jornais velhos iam esculpindo com os dedos a fauna que deveria desfilar pela rua Jardim Botânico iluminada por fogos de bengala de várias cores. E conforme a orientação de Haroldo Lobo, que não só dirigia mas também participava da feitura dos bichos, iam surgindo, primeiro um elefante em seu tamanho natural, depois, um enorme pavão com a cauda aberta e brilhando bastante. Continuando a fabricação os despretensiosos artistas plásticos, na faina de algumas noites de trabalho intenso, tinham criado um zôo pronto para o desfile feérico no domingo anterior ao Carnaval: Um urso, um macaco, uma girafa, um tigre etc. Até mesmo um dragão com quase 25 metros eles, certa vez, conseguram fazer.

Com toda a cidade já alvoroçada nos preparativos para cais na folia, o Bloco da Bicharada numa antecipação aos três dias de fuzarca iniciava o Carnaval na Gávea. Carregados por gente forçuda, os bichos, todos os anos, saíam para a sua passeata triunfal num cortejo em que fogosvermelhos, berdes a azuis faziam rebrilhar sua pintura propositadamente brilhante. Acompanhado-os, a rapaziada do Carioca e moradores do bairro ima cantando uma das músicas de Haroldo Lobo, inédita para o grande povo que só iria conhecê-la no ano seguinte após sua gravação e veiculação pelas rádios. O compositor nesse lançamento prévio podia verificar o agrado de sua composição, pois, a par dos aplausos recebidos pelo bloco, constatava a animação com que todos a entoavam. Teste que sempre se confirmava como aconteceu com Alá-lá-ô, Índio quer apito, Passarinho do relógio, Eu quero é rosetá, Pistoleira e tantas outras de indéntico sucesso


Carlos Monte (esq.) e Antonio Canalini, 23 de janeiro, 2010. Sr. Canalini era um membro do Bloco da Bicharada. Seu avô construía a casa na Rua Jardim Botânico 750. (foto por cortesia de Carlos Monte)

A bicharada voltará à rua

Idealizado por Harold Lobo e tendo nele seu principal animador, o Bloco da Bicharada quando saía do ‘barracão‘ para ser mostrado nas ruas da Gávea representava o trabalho de um grupo de carnavalescos. Além dos que fazíam os bichos havia os encarregados de carregá-los escondidos dentro deles, cada qual contribuindo para o êxito da passeata zôologica. Sócios do Carioca, alguns, outros não, mas todos companheiros do vitorioso compositor que na competição musical carnavalesca estava sempre entre os triunfadores. Essa gente entusiasta: Aníbal de Barros, Cristóvão Capitoni, Abílio de Barros, Geraldo Costa, Salustiano Batista, Ventania e mais os que já foram citados acima, embora lamentando a ausência do criador do bloco, acha que deve continuar a tradição.

A bicharada alegórica que desde 1939 realiza seu passeio pela Gávea, antecipando o Carnaval do bairro, sentirá, é claro, a falta daquele que a comandava e lhe dava o ritmo algre para a caminhada festiva. Os integrantes do cortejo voltarnao a acompanhar os enormes bichos e vão cantar ainda. Entoarão as conhecidas músicas do saudoso compositor não como simples ecarinhosa homenagem apenas mas numa prova facilmente comprovável de que elas, vitoriosas ontem, continuarão ao agrado do povo.


Este artigo foi editado no livro Figuras e Coisas do Carnaval Carioca (MEC-Funarte, 1982).



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