As Crônicas Bovinas, Partes 15 e 16
A morte do policial e o tanguinho.28 de junho de 2002
Desenho de Raoul Dufy para a primeira
produção de Le Boeuf sur le ToitNo artigo inédito Influência da música latino-americana em minha obra, escrito no Mills College em 1944, Milhaud escreveu:
Meu trabalho foi enormemente influenciado pela lembrança do Brasil, que eu tanto amava. Depois de meu retorno à França, eu pensava freqüentemente nos maxixes de ritmos animados e nas melodias mais despreocupadas dos tangos. Eu considerei fazer um tipo de rapsódia baseada nas músicas que eu havia ouvido lá, mas tratadas de forma bastante livre. Queria uma peça de um movimento ininterrupto, colorido e torrencial. Eu lembrei dos filmes de Charlie Chaplin. Mais tarde, dei a ela o título de uma antiga canção brasileira, Le Boeuf sur le Toit, e como subtítulo, Fantasia para o cinema.
Em Notes sans musique (1949) Milhaud acrescentou:
Eu chamei essa fantasia de Le Boeuf sur le toit, que era o título de uma canção popular brasileira. Imaginei que o caráter dessa música poderia torná-la adequada para acompanhamento de um dos filmes de Charlie Chaplin. Na época, os filmes mudos eram acompanhados por fragmentos de música clássica, executados por grandes ou pequenas orquestras, ou mesmo por um único piano, de acordo com os meios financeiros disponíveis. Cocteau não aprovava minha idéia, e sugeriu que ele deveria usá-la para uma apresentação, que ele iria empreender para encenar. Cocteau tinha um gênio para improvisação! Ele mal concebia a idéia de um projeto, e imediatamente a punha em prática. Para começar, ele precisava de algum apoio financeiro. Jean entregou a planta dos assentos do teatro Comédie des Champs-Elysées para o Conde de Baumont, que incumbiu-se de comprar antecipadamente, por um preço alto, as entradas para os camarotes e para as poltronas das primeiras fileiras. Alguns dias depois, como se fosse o agitar de uma varinha mágica, todos o lugares no teatro estavam reservados, e o Xá da Persia até pagou dez mil francos para um assento na frente, do qual ele não podia ver nada, mas onde ele foi visto por todos. Com os gastos do espetáculo cobertos, tudo o que restava a ser feito era começar trabalhar.
Milhaud, Cocteau e PoulencCocteau produziu um cenário pantomima que seria adaptado à minha música. Ele imaginou uma cena num bar na América durante a Proibição. As várias personagens era altamente típicas: um Lutador de Boxe, um Anão Negro, uma Dama da Moda, uma Mulher Ruiva vestida de homem, um Bookmaker, um Cavalheiro trajado a rigor. O Barman, com uma cara parecida com a de Antinous, oferece coquetéis a todos. Após alguns incidentes e várias danças, um Policial entra, e portanto a cena é imediatamente transformada em uma leiteria. Os fregueses representam uma cena rústica e dançam uma pastorale enquanto bebericam copos de leite. O Barman liga um grande ventilador que decapta o Policial. A Mulher Ruiva executa uma dança com a cabeça do Policial e acaba andando sobre suas mãos, como a Salome na Cathedral de Rouen. Um por um os fregueses vão embora, e o Barman apresenta uma enorme conta ao Policial ressuscitado.
Jean tinha contratado os palhaços do Cirque Médrano e os Fratellini para interpretar os diversos papéis. Eles seguiam implicitamente todas as ordens extremamente precisas que Jean lhes dava como produtor. Albert Fratellini, sendo um acrobata, podia até dançar sobre suas mãos em volta da cabeça do Policial. Em contraste com o tempo animado música, Jean fez todos os movimentos devagar, como em um filme em câmera-lenta. Isso conferia uma atmosfera irreal, quase onírica à peça. As máscaras imensas davam uma distinção peculiar a todos os gestos, e faziam o movimento das mãos e pés passar depercebido. Guy Pierre Fauconnet desenhou-as, assim como as fantasias. Nós nos reunimos um domingo na minha casa para ajustar as entradas e danças de acordo com minha partitura, e também para Fauconnet desenhar as personagens enquanto Jean as descrevia para ele. Nós trabalhamos até tão tarde que eu me ofereci para hospedar Fauconnect naquela noite, mas ele recusou e preferiu ir pra casa a Montparnasse, depois de combinar outro encontro conosco. Ele não compareceu. Ansioso, Jean correu pra sua casa e descobriu que o pobre companheiro havia morrido tentando acender uma fogueira. Ele estava, sem nós sabermos, extremamente doente, aparentemente com o coração dilatado. Nele, nós perdemos um amigo muito querido. Essa foi a primeira perda que nosso pequeno grupo veio a suportar. Posteriormente nós perderíamos Meerovitch, Radiguet, Emmanuel Fay, Nininha Guerra...
Raoul Dufy concordou em assumir a tarefa do cenário de Le Boeuf, mantendo as máscaras e desenhos das fantasias de nosso amigo. [...]
Os FratelliniNós anunciamos três apresentações de Le Boeuf. Cocteau estava tão nervoso que ele estava com receio de ninguém vir após a primeira, que não era aberta ao público. Ele persuadiu Lucien Daudet a mandar trezentos pneumatiques (cartas expressas), cada uma intitulando o portador a um pequeno camarote. Houve um acotovelamento indescritível nas portas, que apenas a maneira habilidosa de lidar com a situação e a diplomacia de Lucien Daudet, que consentiu em se encarregar disto, conseguiram manter sob controle.
O programa incluía Trois Petites Pièces Montées, especialmente escrita por Erik Satie para nossa apresentação, Fox-Trot de Auric, e Cocardes de Poulenc, cantada por Koubitzky, acompanhado por violino, trompete, clarinete, trombone e tímpano. regeu nossa orquestra de vinte e cinco instrumentos. Essa demonstração isolada foi vista por ambos os críticos e o público como uma declaração de fé estética. O show descontraído, apresentado sob égide de Erik Satie e tratado pelos jornais como uma gozação, foi considerado pelo público como simbolizando um sistema de estéticas de circo ou teatro de revista, e para os críticos ele representou a tão chamada música pós-guerra ...
O teatro de revistas Ba-Ta-Clan, ParisO balé gozou de sucesso imediato, repetido no teatro Coliseum de Londres em julho de 1920. Em outubro do ano seguinte, Madame Bénédicte Rasimi, diretora do famoso teatro de revistas Ba-Ta-Clan, produziu uma adaptação para seu palco, que ela incluiu na revista Ah oui! e a encenaria novamente no Rio de Janeiro durante a turnê sul-americana da companhia em 1922.
A imprensa brasileira não viu com bons olhos esta produção do Boeuf. Em um artigo intitulado O Brazil atrozmente injuriado em Paris, o jornal O Imparcial informou em 5 de agosto de 1922um dia antes de o Ba-Ta-Clan começar sua temporada de um mês no Rioque dois brasileiros, sendo um deles o diplomata Navarro da Costa, haviam assistido a esta cena de insultos ao nosso país em Paris. O único comentário sobre a música foi feito de passagem, notando que a orquestra tocou maxixes brasileiros e batuques africanos. O empréstimo que Milhaud fez de músicas brasileiras não foi mencionado. O que irritou os brasileiros foi o ambiente do Nothing Doing Bar, caracterizado como um botequim ignóbil, sujíssimo, como se a presença da música brasileira houvesse automaticamente transformado o bar americano da era da proibição em um botequim brasileiro de baixa categoria, denegrindo a imagem do Brasil no exterior. Segundo O Imparcial, ao final do sketch do Boeuf, um dos atores desdobrava um cartaz proclamando El Brasil. Esta asserção nunca foi substanciada.*
O Imparcial, 5 de agosto de 1922Mme. Rasimi apressou-se para enviar uma resposta à imprensa, que foi publicada no jornal O Paiz em 6 de agosto. Sua resposta aparentemente amansou os cariocas, porque a turnê do Ba-Ta-Clan foi um sucesso.
Parte da carta de Mme. Rasimi (O Paiz, 6 de agosto de 1922)No Rio de Janeiro, a companhia Ba-Ta-Clan montou quarto revistas sucessivas no Teatro Lírico. As produções foram Paris Chic (614 de agosto, 1922); Pour Vous Plaire (1521 ag.); Vla Paris (2229 ago.) e Au Revoir (30 ago.3 Set.). Le Boeuf sur le Toit foi incluido na Paris Chic. Vla Paris, uma revista em dois atos e 31 cenas, estreou oito dias após os Oito Batutas retornarem de Paris. Mme. Rasimi não perdeu tempo e contratou o grupo para montar a cena 32 em seu show. Começando no dia 24 de agosto, os Batutas tocaram na Vla Paris o mesmo repertório que haviam tocado no Shéhérazade em Paris. Quando esta produção foi substituída por Au Revoir em 30 de agosto, eles continuaram seu número pela temporada de quatro dias, mas não se juntaram à companhia quando esta prosseguiu a São Paulo, já que eles tinham o compromisso de tocar na Exposição Centenária.
O Ba-Ta-Clan voltou ao Rio em 1926, apresentando a peça Cest Paris no Teatro Lírico. Desta vez, Mme. Rasimi pediu ao percussionista Carlos Blassifera (Carlito) para formar um conjunto de jazz que iria acompanhar a companhia em uma turnê para São Paulo, Salvador e Recife, com a possibilidade de viajar para a Europa. Além do líder, a Carlitos Jazz-Band incluía Donga (violão e banjo), Sebastião Cirino (trompete), Augusto Vasseur (piano), João Wanderley (violino), Orosino (saxofone) e Zé Povo (trombone). Depois da apresentação de Cest Paris em Lisboa, a banda foi liberada e viajou para Paris por conta própria. Lá o embaixador brasileiro, Souza Dantas, arranjou para eles uma temporada de três meses no cabaré Palermo em Montmartre. O nome parisiense da banda era Carlito et son Orchestre. No final de janeiro de 1927, depois de uma temporada no Café Anglais, Donga e Wanderley deixaram o grupo, voltando para o Brasil no dia 10 de fevereiro. A Carlitos Jazz-Band permaneceu na Europa até 1939, quando a deflagração da 2ª Guerra Mundial levou os músicos a retornarem à patria.
A turnê latino-americana de 1926 foi um fiasco comercial, prejudicada por insurreições locais e outros obstáculos imprevistos. Mme. Rasimi foi impelida finalmente a desistir de seu teatro em Paris, que foi convertido em um cinema em 1930. Em 1975, o Bataclan [sic] foi reaberto como um teatro de shows musicais. Dentre os números que se apresentaram lá estão Seu Jorge e Neguinho da Beija-Flor. A conexão Franco-Brasileira é mantida pelo bar brasileiro Beco da Cachaça, localizado ao lado do teatro na Boulevard Voltaire 44.
Melodia No. 15: La Mort du Policeman (não-identificada)
Esse número não-identificado tem a verve galopante de uma czarda. No ballet de Cocteau, ela era tocada durante a morte do policial por decaptação. Na gravação que Louis de Froment fez de Le Boeuf sur le Toit, a música começa aos 8min 42s.
Quando Milhaud escreveu que havia usado até mesmo um fado português em Le Boeuf sur le Toit, ele não especificou que fado era este. É natural assumir que a música em questão é Ferramenta de Nazareth, que traz o subtítulo fado. No entanto, Alexandre Dias indica que a Melodia no. 15, tocada em andamento lento, soa como um fado. Quem sabe? Uma investigação nos fados do início do século XX pode ainda trazer novas revelações sobre esta música.
Melodia No. 16: Tanguinho meio choro (não-identificada)
A melodia no. 16, que soa como um tanguinho, aparece aos 9min 06s na gravação de Froment. Essa melodia é tocada em contraponto com a melodia no. 15.
Como aponta o musicólogo Manoel Aranha Corrêa do Lago, parecia consistente assumir que os poucos segmentos em Le Boeuf que permanecem não identificados devem apresentar características similares àqueles que já foram identificados, i.e., que eles também devem ser citações de seções completas pertencentes a outras peças brasileiras, impressas antes de 1919.
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* Informação sobre a reação nO Imparcial foi fornecida por Elizabeth Travassos e Manoel Aranha Corrêa do Lago no artigo Darius Milhaud e os compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês (Revista Brasileira XI:43, Abril-Maio-Junho 2005). Os autores contaram com a pesquisa de Anaïs Fléchet para sua tese de doutorado La réception des musiques brésiliennes en France au XXème siècle. Informações adicionais foram providenciadas diretamente pela Dra. Fléchet.
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