:: Os artigos individuais nesta série foram originalmente
:: publicados na revista Daniella Thompson on Brazil.

 Tradução: Alexandre Dias

 

As Crônicas Bovinas, Parte 4

O matuto que era o rei do carnaval.

Daniella Thompson

1 de maio de 2002


Carnaval em 1922 (Revista Fon-Fon)

Durante a Primeira Guerra Mundial, Darius Milhaud, com saúde frágil e inapto para o serviço militar, passou quase dois anos no Brasil como secretário do poeta e diplomata Paul Claudel, chefe da legação francesa na época.

Sobre a sua chegada em fevereiro de 1917, Milhaud escreveu na sua autobiografia:

Meu primeiro contato com o folclore brasileiro foi muito repentino. Eu cheguei no Rio bem no meio do Carnaval, e imediatamente senti o clima da alegria louca que possuía toda a cidade. O Carnaval no Rio é um evento importante, cuja chegada é preparada laboriosamente de antemão. Com antecipação de ários meses, os jornais trazem anúncios da formação dos ‘clubes carnavalescos’, juntamente com o nome de seu presidente, secretário e membros. Esses pequenos grupos encontram-se diariamente para a preparação das festividades, e freqüentemente gastam grandes quantias, algumas vezes todas as suas economias, em fantasias enfeitadas com adornos elaborados de penas de avestruz. Seis semanas antes do início do Carnaval, grupos de cordões perambulam pelas ruas nas noites de sábado e domingo, escolhem uma pequena praça e dançam sob a música do violao [sic] (uma espécie de guitarra) e alguns instrumentos de percussão como o choucalha [sic] (um tipo de recipiente redondo de cobre cheio de limalha de ferro que termina em um cabo no qual é aplicado um movimento rotatório, produzindo, assim, um som rítmico contínuo). Uma das diversões favoritas dos dançarinos é improvisar palavras para uma música que é repetida seguidas vezes. O cantor tem que continuar encontrando novas palavras, e assim que sua imaginação começa a afrouxar, outra pessoa toma o seu lugar. A monotonia desse coro sem fim e seu ritmo insistente acaba produzindo um tipo de hipnose a que os dançarinos se rendem. Eu me lembro de ter visto um negro completamente carregado pela música, dançando sozinho com frenesi, segurando em sua mão um sorvete enorme que ele lamberia com sua língua rosa no tempo da música...

As multidões nos salões de baile eram muito mais elegantes. Os organizadores do Carnaval decretam apenas uma cor para os vestidos das damas; elas devem usar uma diferente a cada noite. Elas vão para o baile em toda sua elegância, apoiadas nos braços de seus maridos. Como a maioria dos dançarinos negros são criados, eles pegam emprestados as roupas de seus mestres e algumas vezes até seus nomes e títulos. Em uma noite, eu ouvi “O Presidente do Senado” e “O Embaixador Britânico” anunciados, e vi dois casais de negros, vestidos com esmero, orgulhosamente se apresentarem. Durante seis semanas, toda a populaça se entrega apaixonadamente à dança e ao canto; há sempre uma canção que ganha mais preferência do que as outras, e assim se torna a “canção do Carnaval”. É assim que, em 1917, martelada pelas pequenas orquestras na frente dos cinemas na Avenida, interpretada pelas bandas militares e orfeões municipais, repisada pelos pianos mecânicos e gramofones, trauteada, assoviada e cantada tanto bem como mal em todas as casas: “Pelo Telefono” [sic], a canção do Carnaval de 1917, estourou em toda esquina e nos perseguiu durante todo o inverno.

Milhaud ainda estava no Brasil durante o carnaval seguinte, e não é de se surpreender que aquelas canções de Carnaval que o perseguiam durante seus invernos acabaram reaparecendo no Le Boeuf sur le Toit.


Partitura de “O Matuto”

Melodia No. 4: “O Matuto” (1918)

O cateretê “O Matuto” foi um sucesso no carnaval de 1918. Mais outra melodia rústica de Marcelo Tupinambá, com letra de Cândido Costa, a canção fez tanto sucesso que ela deu origem à burleta O Matuto do Ceará de Domingos Roque e dos irmãos Quintiliano, que teve sua primeira apresentação no dia 16 de março do mesmo no Teatro São José, onde “São Paulo Futuro” havia feito sua estréia em 1914.

Milhaud cita “O Matuto” duas vezes no Le Boeuf sur le Toit. A parte B aparece aos 2min 19s da gravação de Louis de Froment, onde ela é tocada pelas cordas em contraponto com a primeira parte de “O Boi no Telhado”, tocada pelo instrumentos de sopro. “O Boi no Telhado” é outra canção do carnaval de 1918, que Milhaud usou para dar nome ao seu rondó.

A parte A de “O Matuto” não aparece até 10min 19s, onde ela é oferecida em contraponto com “Caboca di Caxangá”. Desta vez ela é tocada pelos instrumentos de sopro.

A primeira gravação foi feita em 1918 pelo cantor Mário Pinheiro (1880–1923) na Casa Edison. Assim como Bahiano e Eduardo das Neves, Pinheiro foi uma das poucas grandes estrelas da indústria de gravação brasileira anterior à introdução do microfone elétrico no final da década de 1920.

O Lado B do mesmo disco contém o tanguinho “Pierrô” do mesmo autor.

Autor: Marcelo Tupinambá - Claudino Costa
Título: O Matuto
Gênero: Cateretê
Intérprete: Mário Pinheiro
Gravadora: Odeon
Número: 121354

Autor: Marcelo Tupinambá - Biografo
Título: Pierrô
Gênero: Tanguinho
Intérprete: Mário Pinheiro
Gravadora: Odeon
Número: 121355


Mário Pinheiro

Outra gravação naquele ano foi feita pela Banda do Batalhão Naval, musicalmente inepta.

Autor: Marcelo Tupinambá
Título: O Matuto
Gênero: Cateretê
Intérprete: Banda do Batalhão Naval
Gravadora: Odeon
Número: 121381

Gravações posteriores foram feitas pelo organista Charles Wilson (ano desconhecido), pelo cantor Roberto Fioravante no LP Mensagem de Saudade (1968), e pela pianista Eudóxia de Barros no CD Lua Branca (1999).

Este trecho sonoro inclui as partes A e B, extraídas da gravação original do Mário Pinheiro.

A partitura para piano, publicada pela Casa Mozart no Rio sob licensa da editora paulista A. Di Franco, classificou “O Matuto” como uma ‘canção cearense’ e ofereceu a seguinte letra:

O Matuto
Canção Cearense
Versos de Cândido Costa
Musica de Marcelo Tupinambá

Quando foi da meia-noite para o dia,
que eu deixei com cortezia
minha terra, o Ceará
as foias véias já cahia pela estrada,
vim marchando na picada
só na sêcca a matutá:

P'r'o sertão do Ceará
Tomára eu já vortá
Tomara eu já vortá...
[bis]

No cemiterio os mortos se alevantaram
uns aos outros perguntaram
que qu'eu havéra de querê?
nas catacumba os defunto té gemia
no céo as coruja ria
Eu mesmo não sei porquê...

P'r'o sertão do Ceará, etc.

As santas, fême, na igreja já chorava
os santos macho só me oiava
com cada ôio assim!
Até os gallo e as gallinha não sabia
de corrê p'ra onde havia
tudo com medo de mim!

P'r'o sertão do Ceará, etc.

Quando eu cheguei dessa viagem cá no Rio
foi qu'antão logo se viu
qu'é qu'eu vinha cá fazê:
eu fui chamado só p'ra sê o presidente
desta terra, desta gente
sê o rei de vosmucê…

P'r'o sertão do Ceará, etc.

Logo o povo, muito amave, foi dizendo
o dote qu'eu ia tendo:
o Pará, França, o Japão,
um iscalé com doze remo e vinte peça
mas abanei co'a cabeça
dizendo "Não quero, não!"

P'r'o sertão do Ceará, etc.

Agora vorto p'r'o meu ceará querido
sinão fico home perdido
é mió eu î p'ra lá!
Quero î m'imbora e hei de î até a nado
sinão fico avaccaiado
como todo mundo está!

P'r'o sertão do Ceará, etc.

Uma versão alternativa:

Quanto foi da meia-noite
Para o dia
Que eu deixei com cortesia
Minha terra, o Ceará
As fôia véia já caía pela estrada
Vim marchando na picada
Só na seca a matuta ah!

P'r'o sertão do Ceará
Tomara eu já vortá
Tomara eu vortá [bis]

No cemitério os mortos
Se alevantaram
Uns aos outros perguntaram
Que eu havera de querer?
Nas catacumbas os defunto
Inté gemia
No céu as coruja ria
Eu mesmo não sei porque ah!

As santa fêmea na igreja
Já chorava
Os santos macho me olhava
Com cada olho assim
Até os galo e as galinh
Não sabia
De corre pra onde havia
Tudo com medo de mim ah!


Acervo Fred Figner, cortesia de Rachel Esther Figner Sisson

= = =

A gravação de Mário Pinheiro foi fornecida por Roberto Lapiccirella.

 

 

Copyright © 2002–2016 Daniella Thompson. All rights reserved.