:: Os artigos individuais nesta série foram originalmente
:: publicados na revista Daniella Thompson on Brazil.

 Tradução: Alexandre Dias

 

As Crônicas Bovinas, Parte 5

Como o Boi ganhou seu nome,
e outras lendas parisienses.

Daniella Thompson

6 de maio de 2002


Le Groupe des Six
(Jacques-Émile Blanche, 1922)

Logo após seu retorno do Brasil, Milhaud e cinco outros jovens compositores franceses—Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Francis Poulenc, and Germaine Tailleferre—formaram Les Six, um grupo a que o poeta e dramaturgo Jean Cocteau servia como um importante catalisador. Em Notes sans musique, Milhaud descreveu os encontros regulares do grupo:

A formação do Grupo dos Seis ajudou a criar laços de amizade mais próximos entre nós. Durante dois anos, nos encontramos regularmente em minha casa todo sábado à noite. Paul Morand fazia os coquetéis, e então nós íamos para um pequeno restaurante no alto da Rue Blanche. A sala de jantar do Petit Bessonneau era tão diminuta que os fregueses de sábado preenchiam-na por completo. Eles davam asas ao bom humor. Nós não éramos todos compositores, pois havia também intérpretes: Marcelle Meyer, Juliette Meerovitch, Andrée Vaurabourg, Irène Lagut, Valentine Gross, a noiva de Jean Hugo, Guy Pierre Fauconnet; e escritores: Lucien Daudet, Raymond Radiguet, um jovem poeta trazido para nós por Cocteau. Depois do jantar, tentados pelos carrosséis movidos a vapor, as cabines misteriosas, a “Filha de Marte”, as barracas de tiro ao alvo, os jogos de azar, a casa dos bichos, o alarido dos órgãos mecânicos com os seus rolos perfurados que pareciam tocar simultaneamente e implacavelmente todas as melodias de som rijo dos teatros de revista, nós visitávamos a Feira de Montmartre, ou, ocasionalmente, o Cirque Médrano para assistir aos Fratellini em suas peças teatrais, tão impregnadas de poesia e imaginação que eram dignas da Commedia dell’Arte. Nós terminávamos as noites em minha casa. Os poetas liam seus poemas, e nós tocávamos nossas últimas composições. Algumas delas, como Adieu New York de Auric, Cocardes de Poulenc e o meu Boeuf sur le toit eram tocadas continuamente. Nós até costumávamos insistir para que Poulenc tocasse Cocardes toda noite de sábado: ele o fazia prontamente. Dessas reuniões, sobre as quais reinava um espírito de alegria despreocupada, uma colaboração frutífera estava para nascer; elas também determinaram o caráter de várias obras fortemente marcadas pela influência do Music Hall.

Stéphane Villemin acrescentou em Les Six, Satie et Cocteau:

Les soirées se terminent chez Darius Milhaud ou au bar Gaya pour écouter Jean Wiéner jouer de la musique nègre. Cocteau lit ses derniers poèmes. Milhaud et Auric, rejoints par Artur Rubinstein, jouent Le boeuf sur le toit à six mains. Cette pièce de Milhaud, créée en 1920 au Théâtre [sic] des Champs-Élysées avec la présence sur scène des fameux frères Fratellini, va devenir le morceau à succès des samedistes. Si bien que le propriétaire du fameux bar Gaya donne à son nouveau restaurant rue Boissy-d’Anglas le nom de Boeuf sur le toit. Jean Wiéner et Clément Doucet font le reste pour faire de cette adresse un lieu de rencontre à la mode.

As noites terminava na casa de Darius Milhaud ou no bar Gaya, onde eles ouviam Jean Wiéner tocar música negra. Cocteau lia seus poemas recentes. Milhaud e Auric, aliados a Artur Rubinstein, tocavam Le Boeuf sur le Toit a seis mãos. Esta peça, apresentada em 1920 no Teatro [sic] des Champs-Élysées com os famosos Fratellini, tornar-se-ia a peça de sucesso do grupo de sábado. Foi de tal sucesso, que o proprietário do renomado bar Gaya chamou seu novo restaurante na rua Boissy d’Anglas de Le Boeuf sur le Toit. Jean Wiéner e Clément Doucet fizeram o resto para tornar este endereço um ponto de encontro à la mode.

De acordo com Maurice Sachs em Au Temps du Boeuf sur le Toit, um diário que ele manteve entre 1919 e 1929 e publicou em 1939 (Nouvelle Revue Critique), Gaya mudou-se para a rua Boissy d’Anglas, 28 (veja fotos) em 15 de dezembro de 1921 e se transformou em Le Boeuf sur le Toit porque seu gerente, Louis Moysès, acreditou que Cocteau o traria sorte. O bar rapidamente se tornou um dos pontos noturnos mais elegantes em Paris e continuou assim até 1928, quando Moysès foi forçado a mudá-lo para vários locais sucessivos.O restaurante existe até hoje, mas sem o menor traço de sua antiga efervecência boêmia e marca social. Um relato sobre suas mudanças de sorte é dado em Les dîners du samedi, 1918–1920 por Marie-Christine Movilliat.

Tão popular era Le Boeuf sur le Toit em seu apogeu, que Maurice Sach escreveu em 1928: “[...] outros restaurantes merecidamente famosos cujos nomes ainda são lembrados hoje por todos ou que ainda estão abertos e continuarão assim por muito tempo parecem ter existido apenas antes ou depois do velho Boeuf.” O nome dele foi adotado por restaurantes e cabarés de várias cidades francesas e belgas. Músicos de jazz que tocavam em outras boites parisienses tinham o hábito de encontrar-se no Le Boeuf sur le Toit após o trabalho para dar uma canja. Até hoje, canjas na França trazem o apelido Boeuf, e dar uma canja é faire le Boeuf ou taper le Boeuf.

Le Boeuf sur le Toit alcançou tal status lendário, que ele acabou se tornando um símbolo de Paris na década de 20 e levou ao equívoco comum de que o rondó do Milhaud havia sido nomeado em homenagem ao bistrô, em vez do contrário.


“Le Boeuf sur le Toit” por Jean Hugo

Melodia No. 5: “O Boi no Telhado” (1918)

Em Notes sans musique, Milhaud escreveu: “Eu chamei esta fantasia de Le Boeuf sur le toit, que era o título de uma canção popular brasileira.”

O tango “O Boi no Telhado” de José Monteiro, vulgo Zé Boiadêro, foi lançado no carnaval de 1918 e raramente foi ouvido desde então. Hoje ele está tão completamente esquecido, que apenas um pequeno número de pessoas seriam capazes de reconhecer sua melodia.

A reivindicação de fama da música está tão intrinsecamente ligada à peça do Milhaud, que a maioria dos ouvintes que tomam conhecimento dela automaticamente assumem que “O Boi no Telhado” é o tema recorrente do rondó em Le Boeuf sur le Toit. Na verdade, a parte A do tango aparece apenas uma vez, aos 2min 19s da gravação do Froment, tocada pelo instrumentos de sopro em contraponto com “O Matuto” nas cordas.

Uma única gravação foi feita até hoje, na qual a mesma parte A citada por Milhaud é barulhendamente e repetidamente tocada pela Banda do Batalhão Naval, provavelmente em 1918:

Autor: José Monteiro
Título: O Boi no Telhado
Gênero: Tango
Intérprete: Banda do Batalhão Naval
Gravadora: Odeon
Número: 121432

Ouça a um trecho desta gravação.


Capa da partitura original (Brasil 1920–1950: Da Antropofagia a Brasília)

A partitura para piano publicada pela Viúva Guerreiro & Cia. e pela Casa Bevilacqua não forneceu letra, mas Edigar de Alencar a incluiu em seu livro O Carnaval Carioca Através da Música (1965), no capítulo 1918–1919:

Nesse carnaval aparece igualmente um samba de Zé Boiadero (José Monteiro) com o título de O BOI NO TELHADO. Editado pela casa Viúva Guerreiro & Cia., traz ainda a designação de tango, mas ao fim da parte musical há uma nota: “Peçam às bandas de música para tocarem êste samba gostoso” (sic):

Vem mulata ter comigo
Vamos ver o Carnaval
Eu quero gozar contigo
Esta festa sem rival.

Vem cá, vem cá, vem cá
meu bem.
Como eu não há
ninguém.

Pula, pula, perereca
E segura esta boneca
[bis]
Vem cá, vem cá, vem cá [bis]
Olá

Segura o cabrito [bis]
O boi é bem manso [bis]
Mulata cutuba [bis]
Aguenta o balanço [bis]

Essa composição possuía mais versos e contava três partes de acôrdo com o figurino em voga. O título lembrava festanças e estórias do nordeste e em nada se relacionava com o texto, mas era pitoresco e de côr claramente folclórica. O BOI NO TELHADO não registra sucesso no carnaval. Todavia, liga-se em definitivo à famosa suite de Darius Milhaud, com a mesma denominação (Le Boeuf sur le Toit), editada em Paris no ano seguinte (1919).


Cartão de publicidade do restaurante Le Boeuf sur le Toit

O motivo de uma vaca em um telhado é universal, e aparece em contos chineses, galeses, e noruegueses, no folclore americano rural e urbano, e em nomes de incontáveis restaurantes ao redor do mundo. Fosse a melodia de “O Boi no Telhado” tão cativante quanto seu título, talvez nós ainda estaríamos cantando-a hoje.

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* Apesar de a Casa Viúva Guerreiro & Cia. ter sido a editora de “O Boi no Telhado”, pelo menos um dos seus catálogos lista o tango como criação de Cardoso de Menezes Filho, compositor de “A Mulher do Bode”.

 

 

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