:: Os artigos individuais nesta série foram originalmente
:: publicados na revista Daniella Thompson on Brazil.

 Tradução: Alexandre Dias

 

As Crônicas Bovinas

Aguardando o fim da guerra: Milhaud no Mills College.

Daniella Thompson

11 de junho de 2005

Assim como a 1ª Guerra Mundial foi a responsável por trazer Darius Milhaud para o Brasil em uma estada de dois anos, a 2ª Guerra Mundial obrigou o compositor a buscar refúgio nos Estados Unidos. “Sou um francês de Provença e, por religião, um judeu” é a primeira frase na sua autobiografia, Notes sans Musique (1949), expandida e republicada como Ma Vie Heureuse em 1974, ano da morte de Milhaud.

Sendo francês, Milhaud estava mais seguro durante os anos 30 do que seus colegas alemães judeus, muitos dos quais deixaram sua terra natal assim que Hitler tomou o poder em 1933. Kurt Weill escapou para a França em março de 1933, e em 1935 ele e Lotte Lenya embarcaram para Nova York, onde Weill iria começar uma segunda carreira como compositor da Broadway. O maestro Otto Klemperer deixou a Alemanha um mês antes de Weill, e assumiu a batuta na Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Albert Einstein renunciou à sua cidadania alemã em 1933 e se mudou para Princeton. Arnold Schoenberg emigrou em 1934, tornando-se finalmente professor da UCLA. Hanns Eisler, que saiu da Alemanha em 1933, passou a maior parte da década de 1940 nos Estados Unidos, assim como fizeram Bertolt Brecht e Theodor Adorno. Hannah Arendt, que chegou em 1940, permaneceria nos EUA pelo resto de sua vida. Acadêmicos menos conhecidos encontraram cargos de professores em universidades negras do sul, como a Universidade Howard, o Instituto Hampton, e as universidades Tougaloo e Talladega, como está documentado no filme From Swastika to Jim Crow da PBS.

A deflagração da 2ª Guerra Mundial alcançou os Milhauds na casa de veraneio da família, L’Enclos, nos arredores de Aix-en-Provence. Milhaud lembrou em sua autobiografia:

Um dia antes de partirmos para Aix, recebi um telefonema de Paris do diretor da Orquestra Sinfônica de Chicago, pedindo, em nome do Frederick Stock, que eu compusesse uma obra para o qüinquagésimo aniversário da orquestra. Quando nós chegamos a Aix, Vladimir Golschmann veio me ver e me pediu uma Fanfare para o sexagésimo aniversário da orquestra de Saint Louis. As cartas de Morini propondo uma turnê nos Estados Unidos estavam ficando cada vez mais prementes. Mas a situação internacional estava ficando negra demais para que eu pudesse tomar tal decisão. Além de tudo isto fiquei doente, e foi de meu leito que fiquei sabendo da invasão da Polônia através do rádio, que levou Inglaterra e França a declararem de guerra.

Nota da editora: Vladimir Golschmann regeu a primeira apresentação de Le Boeuf sur le Toit ou The Nothing-Happens Bar em 21 de fevereiro de 1920.


O jovem Milhaud e seus pais em L’Enclos (retirado de Paul Collaer: “Darius Milhaud”)

Com exceção de uma viagem a Paris para comparecer à estréia de sua ópera Medée, os Milhauds e seu filho Daniel permaneceram em l’Enclos. Com muita apreensão eles acompanharam a Batalha da França, a queda de Paris, o avanço dos alemães, e a decisão do marechal Pétain de parar de guerrear. Milhaud lembrou:

Eu tinha por demais contatos com refudiados alemães, austríacos, tchecos e italianos para não ter uma noção muito clara do que uma ocupação significaria. Eu percebi que a rendição iria preparar o terreno para o Facismo e seu abominável trem de perseguições monstruosas. Madeleine propôs que nós deveríamos deixar o país. Eu estava sem forças, incapaz de fugir, ou mesmo de me esconder se fosse preciso, mas tal decisão era um comprimido amargo de se engolir.... Quando um de nossos jovens amigos, que viria a se tornar mais tarde um membro bastante galante do Resistance, disse a Madeleine, que estava confiando a ele o quão preocupada ela estava: ‘O que temos que fazer é abandonar a Inglaterra e assinar um pacto de cinqüenta anos com a Alemanha!’, ela percebeu o horror completo de nossa situação e começou a trabalhar imediatamente para organizar nossa partida. Os consulados já estavam abarrotados por uma multidão espremida de cidadãos ingleses tentando de todas as formas possíveis sair da França. No Cook’s, onde reservamos lugares no Clipper, encontramos os Werfels, que estavam desesperados porque seus visas haviam sido recusados devido à sua nacionalidade—eles eram tchecos. Desesperados, eles pegaram um táxi em Bordeaux, onde tinham esperança em conseguir seus documentos. Com tristeza, e com um mau pressentimento, nos despedimos deles... Para nós, no entanto, tudo correu bem. Eu tinha comigo toda a correspondência com meu empresário e jornais pré-guerra anunciando minha sinfonia, de modo que o visa americano foi concedido imediatamente. Quanto ao visa de Portugal, o funcionário no Consulado teve a consideração de concedê-lo a mim sem mesmo telegrafar para seu país.


Igor Stravinsky (esquerda) e Nadia Boulanger (direita) visitando os Milhauds no Mills, outubro de 1944 (foto de divulgação)

Seguiram-se uma viagem de carro através da fronteira e várias viagens agitadas de trem pela Espanha até Lisboa.

Em Lisboa, nós corremos para a agência do Clipper, mas nossas passagens já tinham expirado. Elas foram pagas em Marselha, e o franco tinha perdido seu valor. Nós não tínhamos meios para cobrir a diferença de preço, tendo trazido apenas a soma autorizada pelo governo, que se traduzia em doze mil francos para nós três. Nós nem tínhamos dinheiro para reservar uma passagem de barco. Enquanto esperávamos os eventos, nós nos alojamos em um pequeno hotel. Escrevi cartas para Kurt Weill, para meu empresário, para a Sra. Reis, para Pierre Monteux e Sra. Coolidge. Eu disse a eles para onde nós tínhamos de ir, e esses bons amigos começaram a organizar um futuro para mim na América.

Os Milhauds finalmente tinham condições de obter dinheiro para a passagem transatlântica da baronesa Goldschmidt-Rothschild, em troca de dinheiro que o pai de Milhaud enviou ao jardineiro dela em Toulon.

A bordo do Excambion, eu recebi um telegrama do Mills College oferecendo-me o cargo de professor.1 [...] Quando chegamos a Nova York [em 15 de julho de 1940], meus fiéis amigos Kurt Weill e sua esposa, Lotte Lenya, estavam no cais para cumprimentar-nos.

1 Meu nome havia sido proposto por meus amigos Robert Schmitz e os membros do Quarteto Pro Arte.

Nota da editora: Assim como Milhaud, o regente Pierre Monteux veio de uma antiga família provençal judia. Na época, ele era o regente da Orquestra Sinfônica de São Francisco. Os músicos do Quarteto Pro Arte foram artistas em residência no Mills nos anos 1930.


Cortesia de Claude Torres

À direita: Milhaud em casa, Oakland 1950 (foto: Imogen Cunningham)

Dave Brubeck com Milhaud no Mills College

De 1940 a 1947, os Milhauds moraram em uma casa que o Mills College construiu para eles no campus. Eles foram mais afortunados do que artistas e intelectuais menos conhecidos, que se viram sem patrocínio e nenhum perspectiva de trabalho que iria tornar plausível um visa para os EUA. Na carta abaixo, escrita em 3 de junho de 1941, Milhaud responde a um professor francês que havia pedido que ele intercedesse em seu favor. O compositor assegura ao seu correspondente que ele não iria deixar de indicar suas capacidades como professor caso surgisse a ocasião, mas ele é sincero ao falar das poucas chances que teria para obter um cargo.


Scan courtesia de Marty Jourard

A partir de 1971, Milhaud lecionou em anos alternados no Mills e no Conservatório de Paris até que sua saúde debiltada o forçou a se aposentar. Seus estudantes no Mills incluiam Livingston Gearhart, Dave Brubeck, David van Kriedt, Burt Bacharach, William Bolcom e Steve Reich.


Os atores Françoise Arnoul, Micheline Presle, Gérard Philippe e Jean Marais e o diretor Jean Renoir visitam Milhaud no Mills durante o segundo Festival de Filme de San Francisco em 1958. Josepha Heifetz ao piano. (retirado de Paul Collaer: “Darius Milhaud”; scan courtesia de Claude Torres)
 

Madeleine Milhaud foi colaboradora, musa e confidente de seu marido. Durante os anos de guerra no Mills, Madeleine manteve-se bastante ocupada, como seu esposo recordou em My Happy Life:

Madeleine ensinou todos os anos na Maison Française, e também deu aulas de ditado e literatura na universidade no inverno. Ela produziu peças francesas, uma tarefa que envolvia problemas complicados, pois nenhuma de suas atrizes havia estudado arte dramática e elas ficavam ainda mais podadas por falarem uma língua estrangeira. No entanto, por meio de ensaios pacientes e trabalho duro, os espetáculos eram excelentes. Ela produziu peças de Molière, Regnard, Labiche, Superviello, Vildrac e outros, com música de Lully, ou trilhas especialmente compostas por Brubeck, Jones, e Livingston Gearhart. A vida era difícil para Madeleine: não existem empregadas nos EUA a não ser com salários maiores que os de professores de universidade, sem contar que elas precisam ser alimentadas e hospedadas. Eu admiro meus colegas americanos que auxiliam nas tarefas da casa. Madelaine teve que lidar com tudo sem ajuda: fazer a limpeza, ir ao mercado, cozinhar, e lavar—e nós sempre temos um fluxo constante de visitas. Ela também atua como minha chofer, e tem que roubar alguns meses aqui e ali para seu próprio trabalho e leituras. Vocês vejam que o título da pequena suíte para piano que eu escrevi para ela, La Muse Ménagère, não é nenhum exagero.

La Muse Ménagère, Op. 245 foi composta em 1944 e é dedicada a M.M.M.M. Em seu livro Darius Milhaud, Paul Collaer chamou esta suíte “uma calma e íntima evocação da vida familiar”, acrescentando:

Essa bonita expressão de apreço tem uma qualidade confidencial. A maioria das quinze peças poderiam mesmo ser descritas como “música silente”, significando o tipo de silêncio que recai sobre um lar quando a noite se aproxima, quando os pensamentos se voltam para o interior, poucas palavras precisam ser trocadas, e tudo está em paz. Esta música de intimidade, ternura, e afeição requer muito poucas notas. Mas para o intérprete que traz a música à vida, cada nota possui reverberações profundas e emotivas. Publicada na América sob o título The Household Muse, esta não é uma obra para a sala de concerto. É o diário privado de um lar tranqüilo, amoroso, protegido, e precisa ser tocado em uma atmosfera similar. Para que se possa apreciar sua qualidade evocativa, deve-se tocar como se fosse para si mesmo. É uma experiência tocante em uma noite tranqüila ler através dos vários movimentos intitulados “La poésie”, “Musique ensemble” [Música juntos], “La douceur des soirées” [A doçura do anoitecer], e “Lectures nocturnes”; penetrar os murmúrios velados e vagos da “Cartomancie”; evocar a imagem da própria musa amada nos movimentos intitulados “La cuisine” e “La lessive” [Lavando roupa]; e descobrir com graça a turbulência de “Le fils peintre” [O Filho pintor].

A partitura de 1945 de La Muse Ménagère incorpora a face de um gato no desenho do violão (um dos olhos do gato serve como a boca do violão) em homenagem ao gato dos Milhauds, inspiração para a décima peça da suíte. Milhaud gravou a suíte em um LP da Columbia (ML 43 05) que foi lançado em in 1950, com relançamentos em 1976 and 1981. Ela foi gravada em seguida pelo pianista Grant Johannesen (1921–2005) em um LP da Turnabout (TVS34496) e relançada na caixa VoxBox de 2 CDs dedicada a Milhaud (CDX 5109). A pianista Françoise Choveaux a incluiu no Volume 2 da sua coleção Obra Completa de Milhaud para Piano. Para a sua restropectiva em homenagem a Milhaud em setembro de 1998, o Mills College encarregou sua aluna, a dançarina Molissa Fenley, para coreografar La Muse Ménagère. A gravação da suíte completa feita por Carl Banner ao piano pode ser baixada em sete arquivos mp3 no site Washington Musica Viva.

No Mills, Milhaud compôs muitas outras obras e viu muitas delas apresentadas. Pierre Monteux e a Orquestra Sinfônica de San Francisco fizeram da Suíte Sinfônica No.2 Protée uma especialidade. Esta foi uma das primeiras obras de Milhaud, e a OSSF a tocou memoravelmente e a gravou em 1945 em um álbum RCA de três discos 78 rpm.


‘Protée’, álbum gravado por Pierre Monteux e a Sinfônica de San Francisco

O CD Milhaud at Mills: A Celebration in Song contém uma seleção de canções compostas por ele entre 1914 e 1942, interpretadas por membros do Departamento de Música do Mills. Ouça trechos em áudio.


Festa do aniversário de 60 anos de Milhaud no Mills, 1952. Em pé, da esquerda para a direita: Leland Smith, Jerry Rosen, Nathan Rubin, Darlene Mahnke, Dave Brubeck e Jack Weeks. Sentados: Anne Kish, Katherine Mulky Warne, Milhaud, Betsy Barker, Ted Hoffman, Dick Collins, Leone La Duke Evans e Dave van Kriedt. (tirado de Paul Collaer: “Darius Milhaud”)

 

 

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