O Pessoal da Velha Guarda

Programa No. 13

Transcrito por Alexandre Dias


Benedito Lacerda

24-03-1948
(Collector’s AER028 Lado A)

[Vinheta]

Locutor: Um programa do Iofoscal. O Pessoal da Velha Guarda. Um programa para oferecer músicas do Brasil de ontem e de hoje em arranjos especiais de Pixinguinha para a orquestra exclusiva d’O Pessoal da Velha Guarda. Polcas, xotes, valsas, modinhas, choros, enfim, as músicas tradicionais das serenatas aqui aparecerão tocadas também por um legítimo grupo de chorões formado de bombardinos, flautas, violões, saxofones, cavaquinhos, e entoadas por autênticos seresteiros. Também aqui vocês terão a flauta de Benedito Lacerda em diálogos harmônicos com o trêfego saxofone de Pixinguinha. Tudo isso, ouvintes, comandado pela mais alta Patente do Rádio. Pela magia das melodias de outros tempos, O Pessoal da Velha Guarda, sob o comando de Almirante, vem nos trazer a saudade encantada de coisas que se foram, de cantigas que ficaram vivendo apenas no coração do passado. Mas antes de iniciar esta deliciosa viagem ao passado, devemos pensar um pouco no presente, lembrando-nos que a vida moderna exige de nós um dispêndio enorme de energias. E para uma completa restauração de energia, Iofoscal, que contém iodo para o sangue, fósforo para o cérebro, e cálcio para os ossos. Iofoscal, o fortificante ideal.

Almirante: Boa noite, ouvintes de todo o Brasil! A turma da Velha Guarda aqui está de novo reunida. Pixinguinha e Benedito já rebuscaram os velhos arquivos, e de lá tiraram para hoje um bom punhado de músicas que hão de satisfazer a todos os paladares: músicas tristes, músicas alegres, músicas românticas, e músicas que são verdadeiras crônicas do passado. Cada uma terá seu valor especial, cada uma portanto deverá ser apreciada pelo que representa. De uma coisa vocês todos devem estar certos. É que se foram escolhidas por Benedito e Pixinguinha, é porque de fato são todas exemplos bem representativos do que nós possuímos de melhor em cada gênero. E acontece também o seguinte: como a maioria dos números que aqui são executados nunca aparecem em outro qualquer programa de rádio, é natural que muitos ouvintes nos queiram ouvir muitas vezes. E então chegam pedidos sobre pedidos. Isto somente prova o quanto é acertado o critério que preside a escolha do repertório da Velha Guarda. Um artista, como vocês sabem, vive do estímulo que lhe dá o seu público. Felizmente, este estímulo não tem sido negado aos que realizam estas audições. E eu principalmente fico satisfeitíssimo percebendo que cada vez vocês aplaudem com mais entusiasmo Pixinguinha com o seu saxofone (aplausos), Benedito Lacerda, sua flauta e seu regional (aplausos), Raul de Barros e seu bombardino e o Grupo de Chorões (aplausos mais entusiasmados), e esta orquestra toda formada de Pessoal da Velha Guarda (aplausos).

[Orquestra toca um batuque com os instrumentos imitando sons de animais]

Almirante: Os animais têm servido como bom assunto para a fecunda inspiração do nosso Pixinguinha. Vocês em programas passados já puderam observar como ele transportou para a música o grasnar dos marrecos e o coachar dos sapos. Seguindo uma série zoológica, vamos apresentar hoje uma manifestação sonora familiar aos nossos ouvintes: o grito característico da galinha-d’angola, conhecida de muitos como capote. A lástima estridente, no dizer de Afrânio Peixoto. Da curiosa galinha de pescoço pelado, é reproduzida aqui numa onomatopéia pitoresca que lhe atribui o significado de “tô fraco”. Há de certo um contraste entre a estridência e o volume do grito e o que ele representa. É que ninguém que esteja realmente enfraquecido não tem forças bastantes para andar afirmando a toda hora em algo e bom som que está naquele estado de fraqueza. O grito do “tô fraco” até me faz lembrar uma cena a que eu assisti num teatro, em que o ator, por necessidade de interpretação, já que figurava um moribundo, dizia sempre num murmúrio: “Ai, não posso mais, tô fraco, estou perdendo as forças”. Mas um expectador lá dos fundos, como não ouvisse bem, reclamou. Isto obrigou o ator a recitar um pouco mais alto a sua frase. Mas aquele volume ainda não contentou o expectador que continua a reclamar. Diversas tentativas então foram feitas para atender ao homem da platéia, que teimava em dizer que não ouvia nada. E por fim o ator moribundo teve que representar o seu papel de homem na última lona numa voz tonitruante assim: “AI! NÃO POSSO MAIS! ESTOU PERDENDO AS FORÇAS!!” [risos]. Tudo isso, ouvintes, vem a propósito do número que vão ouvir em seguida pela Orquestra do Pessoal da Velha Guarda. Trata-se de um choro de Pixinguinha em que a orquestra vai imitar o grito da galinha-d’angola. Atenção, pois, para o choro “Tô Fraco”.

Orquestra Pessoal da Velha Guarda: “Tô Fraco” (Pixinguinha)

Coro: “O que que a baiana tem? O que que a baiana tem?

Almirante: Não é de hoje, ouvintes, que muita gente quer saber o que que a baiana tem. A Bahia no Brasil, pelo seu passado histórico, pelo interesse etnográfico e etnológico que desperta, enfim, por tudo que ela representa na tradição do país, tem feito com que a atenção geral se volte insistentemente para a boa terra. A música popular tem registrado um interesse pelas coisas da Bahia por meio de cantigas que marcaram época, e que fizeram aumentar a curiosidade por tudo que acontecia no grande estado do norte. Em 1918, por exemplo, referindo-se ao intenso movimento político da época, Sinhô punha em foco a Bahia num notável samba de que todos vocês se lembram.

Coro: “A Bahia é boa terra, ela lá e eu aqui iaiá.

Almirante: Dois anos depois era ainda Sinhô que em outro samba fazia voltar a Bahia à ordem do dia graças àquele estribilho famoso.

Coro: “A Bahia não dá mais coco para botar na tapioca.

Almirante: E no ano seguinte, já em 1921, era tamanha a influência dos costumes baianos nessa cidade, que nas vésperas do carnaval, nas inúmeras batalhas de confete, tornaram-se notáveis os indivíduos que se travestiam de mulher usando de preferência o traje típico das baianas. Isto fez nascer um samba que ironizava a moda assim.

Coro: “Todo homem quer, quer, quer, quer, saia de baiana pra vestir-se de mulher.

Almirante: A Bahia tornava-se um assunto querido entre os compositores, e para confirmar a tendência pouco depois, o maior sucesso das ruas, nos bailes e nos teatros era um certo samba da autoria de Cirino que exaltava a Bahia de maneira originalíssima assim.

Coro: “Dizem que Cristo nasceu em Belém, a história se enganou. Cristo nasceu na Bahia, meu bem, e o baiano criou.

Almirante: Tanto alarde em torno das coisas daquele estado fizeram crescer a curiosidade de toda a gente. Pixinguinha não se livrou dessa curiosidade. Tanto que a confessou num samba que escreveu de parceria com Vidraça. Samba que o Grupo dos Chorões vai relembrar agora. Ouçam pois e ajudem se quiserem daí o “Ai, Eu Queria” de Pixinguinha e Vidraça.

Almirante, Raul de Barros e o Grupo dos Chorões: “Ai, Eu Queria” (Pixinguinha/Vidraça)

[Pixinguinha toca um Mi 2 no saxofone]

Almirante: Poucas músicas terão o privilégio de poder ser identificadas por uma nota, hein? E entre estas poucas está o grande choro “André de Sapato Novo”. Basta que Pixinguinha extraia do seu saxofone este Mi grave para que todos reconheçam logo que música vem por aí. Aquele grave, como todos sabem, representa a parada que faz a todo momento o indivíduo que calça o sapato novo que lhe aperta o pé. O calo está gritando dentro do calçado, e o jeito é fazer umas paradas para ajeitar os dedos comprimidos. O choro “André de Sapato Novo” do saxofonista André Victor Corrêa, falecido recentemente, segura as agonias do autor num dia em que calçou um sapato novo. A execução estará a cargo de Benedito na flauta e Pixinguinha no saxofone. Cada nota assim (Pixinguinha toca um Mi 2) no saxofone do Pixinguinha representa uma daquelas paradas providenciais. Ouçam.

Benedito Lacerda e Pixinguinha: “André de Sapato Novo” (André Victor Corrêa)

[Flautim sola uma polca]

Almirante: Na vasta família dos instrumentos musicais existem aqueles cuja sonoridade presta de maneira [?] para dar a idéia de um pensamento ou de uma situação ou até de um gesto. Quando um orquestrador quer imprimir ao seu trabalho uma tonalidade tristonha, melancólica, usa com destaque, por exemplo, o violoncelo. Basta sua plangência para dar à música o caráter que ele deseja. Quando quer dar ao seu trabalho um aspecto marcial, usa, é lógico, os metais, o trompete, o trombone. Para significar coisa saltitante, buliçosa e agitada, um instrumentador geralmente lança mão do flautim. É este o caso de agora. Pixinguinha tem uma polca-marcha que se chama “Vou Andando”. O título sugere logo movimento. Lembra alguém que se despede, alguém que parte alegremente depois de se despedir. Para conjugar o que o título sugere em efeito musical bem condizente, Pixinguinha aí usou o flautim. Vocês vão ouvir a polca, e diante da primeira parte, confiada ao flautim, hão de ter a impressão daquela cena do indivíduo que se despede e sai caminhando apressadamente e alegre depois de ter dito “Vou andando”. Ouçam a Orquestra do Pessoal da Velha Guarda.

Orquestra Pessoal da Velha Guarda: “Vou Andando” (Pixinguinha)

Coro:

Có có có có có có ró
Có có có có có có ro
O galo tem saudade da galinha carijó

Almirante: Já tivemos hoje um exemplo zoológico, e aqui vai outro, ouvintes. Algumas aves domésticas tem sido usadas insistentemente pelos compositores, citadas pelos seus nomes, ou mesmo contribuindo com efeitos sonoros que reproduzam suas vozes, obrigando cantores a habilidades verdadeiramente zoológicas. Não é de hoje, entretanto, este tema, hein? Já há muitos anos, bem uns 30, a música de maior sucesso neste Rio de Janeiro era uma certa polca lançada pela orquestra [Pickman?] no conhecido Clube dos Políticos, e que logo se divulgou por todo o Brasil. Seu nome era “Morro da Favela”, mas o que lhe deu fama foram os versinhos anônimos desviados completamente do sentido do título. Os versinhos faziam alusão a uma ave doméstica que vocês logo saberão qual é. Ou, ouvindo logo a melodia da primeira parte, ou ao ouvir o breque que Pixinguinha fez na segunda parte, e no qual vai aparecer uma imitação do bicho. Ao reconhecerem qual era a ave, muitos de vocês vão lembrar logo, pelo menos a picaresca quadrinha que foi o que mais contribuiu para que a polca se espalhasse logo. Muitos de vocês vão rir lembrando os versos. Mas tomara que ninguém, vendo vocês rindo, e percebendo neste riso a certeza de que vocês sabem a letra, tomara que ninguém venha pedir a vocês que a recitem, hein? Atenção pois, amigos, que aí vai uma música que marcou época. A polca “Morro da Favela”, de Passos, Borneo e Barnabé.

Orquestra Pessoal da Velha Guarda: “Morro da Favela” (Passos/Borneo/Barnabé)

Almirante: O Pessoal da Velha Guarda atende agora ao pedido do ouvinte Olavo C. Guimarães de Santa [Névia?], que pede para ouvir de novo a linda schottisch “Passinho de Moça”, de Henriquinho Dourado. O belo arranjo que vão ouvir é de Pixinguinha.

Orquestra Pessoal da Velha Guarda: “Passinho de Moça” (Henriquinho Dourado)

Locutor: E assim a Rede Carioca de Rádio apresentou O Pessoal da Velha Guarda, um programa de Almirante, oferecido por Iofoscal, fortificante ideal. Em qualquer idade, em qualquer época do ano, Iofoscal dá resultados excelentes. Iofoscal é um fortificante que beneficia todos os órgãos. Para as crianças, para os adultos, para os velhos, Iofoscal é o fortificante ideal.

[Vinheta final]

Almirante: E aqui se despede por hoje O Pessoal da Velha Guarda, que tem a participação especial de Benedito Lacerda e seu regional e de Pixinguinha. Na audição de hoje vocês tiveram os arranjos especiais de Pixinguinha para a Orquestra do Pessoal da Velha Guarda, os números de bossa do Grupo dos Chorões que conta com o bombardino de Raul, e os acompanhamentos do famoso regional de Benedito Lacerda. O locutor foi Carlos Frias. Na próxima quarta-feira, às 21 horas, aqui estará novamente O Pessoal da Velha Guarda.

 

Programa No. 14

O Pessoal da Velha Guarda


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