As Crônicas Bovinas, Parte 11
Maricota, Borboleta, ou O Roceiro?
7 de junho de 2002
Saberemos algum dia?
Marcelo Tupinambiná em 1925A melodia cabocla de Marcelo Tupinambá fez um sucesso enorme na Europa nos concertos de Villa-Lobos. A esse nosso músico, um crítico parisiense perguntou se o compositor modernista francês Darius Milhaud, vivendo alguns anos no Brasil, não se teria inspirado em Tupinambá. Villa-Lobos, assomadamente, respondeu: Ele copia, êle edita Tupinambá.
Dr. Ulisses Paranhos, História da Música
Ernesto Nazareth foi o prógono de nosso ritmo. Marcelo Tupinambá é o epígono do nosso ritmo. É este último o único músico que criará o seu ritmo para diferir dos outros, o seu ritmo para ser seu e do Brasil.
Fernando Mendes, O Ritmo Brasileiro
Há quase dois anos, quando comecei a me envolver com a história do Boi, fiz uma busca na Usenet, onde encontrei uma mensagem de Marcelo Meira, identificando uma das melodias citadas em Le Boeuf sur le Toit como Borboleta (Folclore Nordestino), música gravada por Marisa Monte no CD Mais de 1991:
Borboleta pequenina
Que vem para nos saudar
Venha ver cantar o hino
Que hoje é noite de NatalEu sou uma borboleta
Pequenina e feiticeira
Ando no meio das flores
Procurando quem me queiraBorboleta pequenina
saia fora do rosal
Venha ver quanta alegria
Que hoje é noite de NatalBorboleta pequenina
Venha para o meu cordão
Venha ver cantar o hino
Que hoje é noite de NatalUm mês depois, descobri que a melodia de Borboleta era idêntica à de Maricota, Sai da Chuva de Marcelo Tupinambá. A dúvida que surgiu e que desde então não quis calar é: qual veio primeiro?1
Borboleta é o nome de um reisadouma dança executada no norte e no nordeste como parte de comemorações natalinas. O reisado foi importado para o Brasil a partir da península Ibérica no século XIX e era costumeiramente dançado na véspera do Dia de Reis (6 de janeiro) para celebrar o nascimento de Jesus.
A letra acima convida a borboleta para vir ao cordão dos cantores. Outra manifestação folclórica natalina é o Pastoril. Divididas em dois cordões, um azul e outro vermelho, as pastoras dançam e cantam sobre o nascimento de Jesus em meio de ornamentações rústicas.
Seria o caso de Borboleta ter precedido Maricota, Sai da Chuva,? Ou teria a letra de Borboleta sido adicionada à melodia de Marcelo Tupinambá? As perguntas não terminam aí. Prof. Aloysio de Alencar Pinto descobriu ainda outra música cuja primeira parte corresponde exatamente àquela de Maricota. Entitulada O Roceiro, ela é atribuída a Eduardo Bourdot, um compositor ativo em São Paulo no início do século XX.
Quer a melodia tenha se originado de uma música folcórica ou popular, composta por Bourdot ou por Tupinambá, nós podemos estar certos de uma coisa: quando Milhaud comprou sua quantité de maxixes et de tangos para conseguir assimilar aquela pausa imperceptível nas síncopes, ele estava comprando partituras de Tupinambá.
1. A resposta veio em 2014. A canção folclórica original, “Borboleta de Natal”, foi recolhida em Segipe por Sylvio Roméro, que a editou no livro Cantos populares do Brasil (1897). A partitura de “Borboleta de Natal”, adaptada para piano e voz por Annibal de Castro e editada pela Casa Vieira Machado em 1898 ou 1899, mostra uma melodia que nada tem em comum com aquela de Maricota, Sai da Chuva.
Melodia No. 11: Maricota, Sai da Chuva (1917)
Assim como Viola Cantadeira (melodia no. 2, pelos mesmo autores), Maricota, Sai da Chuva é um tanguinho que foi primeiramente apresentado na opereta sertaneja Scenas da Roça, escrita por Arlindo Leal.
Como a partitura para piano de Viola Cantadeira, Maricota, Sai da Chuva (ou Maricóta, Sáe da Chúva,, como era chamada então), vendida por 1.500 réis, trazia o subtítulo Canção Sertaneja e anunciava que a música era parte do repertório dos duettistas Os Garridos. Aqui também, o nome de Arlindo Leal aparece como o autor original de Scenas da Roça, sem crédito específico para a letra. Assim como Viola Cantadeira, Maricota, Sai da Chuva foi publicada pelo Editor Sotero de Souzao próprio Sotero a quem o jovem João de Souza Lima, vulgo Xon-xon, costumava vender suas criações de improviso por 20 mil réis (o preço a varejo de 13 partituras para piano) sempre que Os Voadô precisavam de troco para uma noite na cidade.
A parte A de Maricota, Sai da Chuva pode ser ouvida aos 5min 44s na gravação que Louis de Froment fez do Le Boeuf sur le Toit.
A gravação mais antiga de Maricota listada na base de dados da Fundação Joaquim Nabuco foi feita pelo grupo O Passos no Choro em 1919. No lado B (121516), o mesmo disco continha Viola Cantadeira.
Autor: Marcelo Tupinambá
Título: Maricota, Sai da Chuva
Gênero: Tanguinho
Intérprete: Grupo O Passos no Choro
Gravadora: Odeon
Número: 121515Em 1952, a canção foi gravada novamente, dessa vez pelos Trio Madrigal e Trio Melodia. O arranjo em forma de baião foi escrito por Radamés Gnattali.
Autor: Marcelo Tupinambá
Título: Maricota, Sai da Chuva
Gênero: Baião
Intérprete: Trio Madrigal & Trio Melodia
Gravadora: Continental
Número: 16.600-A
Matriz: C-2813
Data gravação: 19.03.1952
Data lançamento: Jul/1952Em outubro do mesmo ano, os dois trios apresentaram a música ao vivo no programa Quando Canta o Brasil da Rádio Nacional.
Trio Madrigal era um grupo vocal feminino criado em 1946 pelo maestro Alceu Bocchino na Radio Mayrink Veiga. As integrantes na época da gravação de Maricota, Sai da Chuva eram Edda Cardoso, Magda Marialba e Lolita Koch Freire. O trio começou a gravar em 1949 e foi ouvido em todos os programas da Rádio Nacional. Elas registraram dois sucessos dentre as 100 mais tocadas canções brasileiras de 1951 e uma de 1954. Elas freqüentemente cantavam no rádio com o Trio Melodia, e os dois trios gravaram 38 músicas juntos.
Trio melodia era constituído pelos cantores bem conhecidos Nuno Roland, Paulo Tapajós e Albertinho Fortuna, todos com carreiras solo. O trio foi formado por Paulo Tapajós para o lançamento do programa de rádio Um Milhão de Melodias em 1943. Esse programa foi irradiado durante 13 anos na Rádio Nacional, e ambos ele e seu substituto, Quando Canta o Brasil, foram concebidos e dirigidos por Tapajós, com arranjos musicais de Radamés Gnattali, que também regia a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali, criada especialmente para Um Milhão de Melodias. Trio Madrigal e Trio Melodia cantavam regularmente nos programas dos anos 40 e 50.
Ouçam um trecho da gravação do Trio Madrigal e Trio Melodia de 1952.
Paulo Tapajós e Radamés GnattaliVárias versões instrumentais foram gravadas pelos pianistas Mário de Azevedo (no LP Marcello Tupynambá na Interpretação do Pianista Mario de Azevedo, Sinter SLP-1090; 1956), Marcelo Guelfi (1983) e Eudóxia de Barros (no CD Lua Branca,1999).
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A letra, novamente fazendo graça dos caboclos, soa ultrajante, mas na verdade é bem inocente. Aconstipar no contexto da música não tem nada a ver com constipação, e sim com ficar gripado
O autor brasileiro Mário de Alencar expõe outro contexto para o título da canção. Em seu ensaio Cousas do Tempo, publicado em 1920, Alencar desencadeia uma longa discussão sobre música dançante da época, relatando que para obter maior efeito, orquestras dançantes freqüentemente paravam de tocar no meio de uma música, e o líder da banda gritaria Maricota, sai da chuva! ou um refrão parecido antes da música ser retomada:
Agora a música dos bailes não tem o compasso de ondulação suave: chocalha; não deslizam os pés: sapateiam; não se alinham os corpos em par que revoa, apenas unidos pelo toque leve dos braços: agarram-se, aferram-se; nem o movimento é composto pela atitude da beleza: os troncos dobram-se, chocam-se, sacodem-se e pulam, desconjuntam-se e descambam, ou só remexem, jungidos, em quebros de melopéia ou batuques de cateretê, durante os quais não raro, para maior efeito, há uma pausa na música e um grito do batuta: Maricota, sai da chuva! ou estribilho equivalente. E o saracoteio recomeça mais vivo, num gingo-gingo estonteado e suado de samba.
A seguinte letra vem da partitura para piano publicada por Sotero de Souza. Abaixo dela você encontrará o poema Tanguinho Macabro de Vinicius de Moraes, que coloca novos ângulos na história da Maricota.
Maricóta, sáe da chúva...
Tanguinho
Canção Sertaneja
Da opereta sertaneja Scenas da Roça
Original de Arlindo Leal
Musica de Marcello TupynambáCôro:
Maricóta, sáe da chúva
Deixa, deixa de embromá
Maricóta, sáe da chúva
Que tu vaé te aconstipá
A chúva tá penêrano
Tá penêrano no á
Maricóta, sáe da chúva
Que tu vaé te aconstipáMaricóta:
Não tenho medo da chúva
Nem do ronco do trovão
Eu quero mêmo que chôva
Pra lavá meu coraçãoPenêra, chuva, penêra;
Não deixa de penêrá...
E prô sê triste rocêra
Como tu anda a chorá...Côro:
Maricóta, sáe da chúva, etc...Maricóta:
Não tenho medo da chúva, etc...Lá no ceo tá fuzilano
Vejo as nuvens a se mexê
,Pode sê que seja engano
Se chovê logo se vê...Côro:
Maricóta, sáe da chúva, etc...Maricóta:
Não tenho medo da chúva, etc...Óia o sór já pareceu...
Já, não chóve, nhô Vadô,
Óia o arco, lá no céu,
A trovada já passô...Côro:
Maricóta, sáe da chúva, etc...Maricóta:
Não tenho medo da chúva, etc...Cala a bocca, nhô Vadô
Que essa chúva não me móia...
Vá s'imbora, minha gente,
Que moiada eu não estô...Tanguinho Macabro
(Vinicius de Moraes)- Maricota, sai da chuva
Você vai se resfriar!
Maricota, sai da chuva
Você vai se resfriar!
- Náo me chamo Maricota
Nem me vou arresfriar
Sou uma senhora viúva
Que náo tem onde morar.- Maricota, sai da chuva
Você pode até morrer!
Maricota, sai da chuva
Você pode até morrer!
- Pior que a morte, seu moço
É ser moça e náo poder
Mais morta que estou náo posso
Tomara mesmo morrer.- Maricota, vem comigo
Para o meu apartamento!
Maricota, vem comigo
Para o meu apartamento!
- Fico muito agradecida
Pelo generoso intento
E sem ser oferecida
Aceito o oferecimento.- Maricota, meu benzinho
Tira o véu para eu te ver!
Maricota, meu benzinho
Tira o véu para eu te ver!
- Ah, estou tão envergonhada
Que nem sei o que dizer
Só mesmo a luz apagada
Poderei condescender.- Maricota, esse perfume
Vem de ti ou de onde vem?
Maricota, esse perfume
Vem de ti ou de onde vem?
- E o odor que se tem na pele
Quando pele não se tem
E o meu cheirinho de angélica
Que eu botei só pro meu bem.- Maricota, dá-me um beijo
Que eu estou morto de paixão!
Maricota, dá-me um beijo
Que eu estou morto de paixão!
- Satisfarei seu desejo
Com toda a satisfação
Aqui tem, seu moço, um beijo
Dado de bom coração.- Maricota, os seus dois olhos
São poços de escuridão!
Maricota, os seus dois olhos
São poços de escuridão!
- Não são olhos, são crateras
São crateras de vulcão
Para engolir e etcetera
Os moços que vêm e vão.- Maricota, o teu nariz
São duas fossas de verdade!
Maricota, o teu nariz
São duas fossas de verdade!
- Não é nariz não, mocinho
E uma grande cavidade
Para sentir o cheirinho
Dessa sua mocidade.- Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
- Não é boca, meu tesouro
É um sorriso alveolar
São quatro pivôs de ouro
Presos no maxilar.- Maricota, tuas maminhas
Tuas maminhas onde estão?
Maricota, tuas maminhas
Tuas maminhas onde estão?
- Estão na boca de um homem
E do seu filho varão
Maminhas não eram minhas
Eram coisas de ilusão.- Maricota, que engraçado
Onde está seu buraquinho?
Maricota, que engraçado
Onde está seu buraquinho?
- Buraco só tenho um
De sete palmos neguinho
Mas é melhor que nenhum
Pra caber meu amorzinho.- Maricota, estou com medo
Estou com medo de você!
Maricota, estou com medo
Estou com medo de você!
- Não se arreceie, prometo
Que nada tens a perder
Mais vale amar um esqueleto
Que uma mulher, e sofrer.E a Morte levou o moço
Para o fatal matrimônio
Deu-lhe seu púbis de osso
Sua tíbia e seu perônio
Diz que o corpo decomposto
De manhã foi encontrado
Mas que sorria o seu rosto
Um sorriso enigmático
Estou agradecida ao Alexandre Dias pela informação sobre a partitura de Borboleta do Natal.
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