border=0 :: Os artigos individuais nesta série foram originalmente
:: publicados na revista Daniella Thompson on Brazil.

 Tradução: Alexandre Dias

 

As Crônicas Bovinas, Parte 24

De imigrantes italianos & cinema.

Daniella Thompson

18 de outubro de 2002


Rua São Bento, no Triângulo de São Paulo

O perfil da cidade de São Paulo foi definido em grande parte pela imigração italiana no século XIX. Em particular, a vida musical da cidade foi marcada pela presença de italianos e seus descendentes. Dentre os compositores eruditos paulistas de origem italiana, basta mencionar Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e Lina Pesce. Dentre os editores de música: A. Di Franco, Campassi & Camin, Irmãos Vitale. Fabricantes de instrumentos musicais: Giannini, Del Vecchio e Di Giorgio. Professores de música: Luigi Chiaffarelli, Giulio Bastiani, Guido Rocchi, Giacomo Foschini e Agostinho Cantu. Arranjadores-maestros: Leo Peracchi, Lyrio Panicali e Júlio Medaglia. Compositores populares e intérpretes: os violonistas Américo Jacomino (o primeiro "Canhoto") e Antônio Rago; o sambista Adoniran Barbosa; o flautista Copinha; a rainha do rádio Marlene; os cantores Paraguassu, Francisco Petrônio e Zizi Possi; o compositor-violonista-vocalista Toquinho; o pianista-compositor (e parceiro de Noel Rosa) Vadico; e o biólogo-sambista Paulo Vanzolini.

Um músico paulista importante nascido na Italia foi Carlos Pagliuchi (1885–1963). Pianista de renome, ele regeu orquestras em vários cinemas de São Paulo na época em que isto era considerado uma atividade de prestígio. Em 1917, ele se tornou professor de música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, abandonando os cinemas.

Em seu livro de memórias Moto Perpétuo (1982), o compositor João de Souza Lima, autor de “Amor Avacalhado,”, lembrou sua amizade com Carlos Pagliuchi:

Naquele tempo todas as casas de exibições cinematográficas eram obrigadas a manter um pequeno conjunto musical para acompanhar os filmes. Uma dessas casas, o cinema Pathé Palace, possuía um conjunto de grande importância, que era dirigido pelo músico Carlos Pagliuchi, pessoa muito amiga, um dos compositores de música popular mais em evidência na cidade. Quem não se lembra de duas de suas principais composições, a valsa “Deusa” e o tango “Estragadão”? Manifestando-lhe o meu desejo de ingressar naquela atividade, de tocar em pequenos grupos de música e dirigi-los, como fazia ele, imediatamente me iniciou. Fazia-me sentar ao seu lado para observar como tudo se passava. Não demorou muito para que me adaptasse àquela atividade, tanto assim que logo tornei-me seu substituto. [...] Trabalhei em vários cinemas da cidade: Cine Marconi, Cinema Central (onde contava com um conjunto bem maior), Teatro Esperia (onde trabalhei desde a sua inauguração), hoje Teatro Bela Vista. [...]


Cine Central em São Paulo, lugar
chic para tocar e ouvir música

O trabalho exaustivo chegou a tal ponto que Souza Lima precisou recuperar sua saúde e, a conselho médico, retirou-se na cidade tranqüila de Tremembé. Lá ele era visitado por amigos de São Paulo:

Uma dessas visitas me foi feita pelos meus grandes amigos Waldemar Otero e Carlos Pagliuchi. Este, muito jovial, num belo dia saiu com sua máquina fotográfica pelas ruas daquela cidadezinha, bancando o fotógrafo profissional, num andar manquejante e gritando: “retratos especiais, a dez tostões a dúzia; sujeito feio sai bonito; sujeito preto sai branco”, e outras tantas. Era de morrer de rir. E quando, à noite, ele e Waldemar Otero subiam as àrvores do jardim e tocavam as suas gaitinhas, as pessoas que passeavam não sabiam donde vinha aquela música!

Pagliuchi deixou uma quantidade apreciável de composições, tanto eruditas como populares. Manoel Aranha Corrêa do Lago revela que Pagliuchi foi um dos compositores—os outros foram Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald, Francisco Braga e Xavier Leroux—escolhidos por José de Freitas Valle (“Jacques d'Avray”) para musicar os seus Tragi-Poèmes. Le Clown de Pagliuchi para voz e orquestra foi apresentado em São Paulo sob a batuta de Xavier Leroux, que fora um dos professores de Milhaud no Conservatório de Paris. A biblioteca musical do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (sediada em Colonha, na Alemanha) lista as composições populares de Pagliuchi “Raggi infrarossi”; “Encrenca”; “Noite de Santo Antonio”; “Noite de São Paulo”; “Noite de São Pedro”; “Urucubaca”; e “Sertanejo”—todas publicadas por A. Di Franco de São Paulo—e seu “Estragadão”, editado por C. M. Roehr.


Rua Direita, no Triângulo de São Paulo

Melodia No. 24: “Sertanejo” (1919)

Em sua partitura original para piano, “Sertanejo” é identificado tanto como um tango quanto como batuque-dança brasileira. É uma peça complicada de se tocar, dando a impressão de precisar do dobro do número normal de dedos, se a proliferação de notas na página for uma indicação correta.

A composição é dedicada “Ao Dist. e insuperavel amigo Paulo Pereira Barretto.” Seria este homenageado parente do Dr. Luiz Pereira Barreto (1840–1923), o ilustre cientista, político e jornalista?

A base de dados da Fundação Joaquim Nabuco lista um total de duas gravações de obras do Pagliuchi, uma delas “Sertanejo”. A música teve que esperar onze anos para ser gravada.

Autor: Carlos Pagliuchi
Título: Brejeira
Gênero: Valsa Choro
Intérprete: Orquestra Andreozzi
Gravadora: Odeon
Número: 121605


Acervo Fred Figner, cortesia de Rachel Esther Figner Sisson

Autor: Carlos Pagliuchi
Título: Sertanejo
Gênero: Tango Brasileiro
Intérprete: Orquestra Paulistana
Gravadora: Odeon
Número: 10713-B
Matriz: 3772
Data Lançamento: Dez/1930

Como foi discutido em As Crônicas Bovinas, Parte 23, a citação de “Sertanejo” em Le Boeuf sur le Toit faz parte de um contraponto triplo. Milhaud cita a parte C de “Sertanejo” antes da parte A. Esta primeira citação começa aos 13min 19s na gravação de Louis de Froment.

Parte A começa cerca de 15 segundos depois, mas é praticamente inaudível diante dos trompetes que tocam “Seu Amaro Quer.”. A mesma parte pode ser ouvida bem claramente na gravação em piano a quatro mãos de Stephen Coombs e Artur Pizarro.


Stephen Coombs e Artur Pizarro tocam Milhaud

Como a gravação antiga de “Sertanejo” feita pela Orquestra Paulistana não está disponível, Alexandre Dias gravou Parte C

e Parte A a partir da partitura original para piano.



Scan por cortesia de Alexandre Dias

 

 

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