Doutor Tanguinho
Marcelo Tupinambá foi um
16 de março de 2002
dos primeiros reis da música
popular brasileira.
Marcelo TupinambáEm novembro de 1920, Darius Milhaud publicou na revista La Revue Musicale um artigo entitulado Brésil, em que descreveu o estado da música erudita brasileira, que era fortemenete influenciada pelo impressionismo francês da época. Concluindo suas notas, o compositor aconselhou:
Seria desjável que os músicos brasileiros entendam a importância dos compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês como Tupynamba ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia sempre renovada, a verve, a vivacidade, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa que são encontradas em cada obra desses dois mestres fazem destes últimos a glória e a jóia da arte brasileira. Nazareth e Tupynambá precedem a música de seu país como aquelas duas grandes estrelas do céu sulino (Centauro e Alfa Centauri) precedem os cinco diamantes do Cruzeiro do Sul.
Milhaud não estava falando em vão, pois entre os dois, Marcelo Tupinambá (ou Marcello Tupynambá, como o nome costumava ser escrito) e Ernesto Nazareth forneceram onze de quase 30 melodias brasileiras citadas pelo compositor francês em sua obra mais conhecida, Le Boeuf sur le Toit (1919). Na verdade, só Tupinambá compôs sete dessas músicas.
Não que Milhaud tenha algum dia admitido pegar emprestado de Tupinambá e Nazareth. Ele nunca revelou a identidade de suas fontes. Em sua autobiografia, publicada primeiramente em 1949, ele divulgou apenas isto:
Ainda perseguido pelas lembranças do Brasil, eu juntei algumas poucas melodias populares, tangos, maxixes, sambas, e até um fado português, e os transcrevi com um tema de rondó recorrente entre cada par sucessivo.
Cinco anos antes, nas notas de palestra Influence of Latin-American music on my work (Influência da música latino-americana em minha obra), escritas no Mills College, Milhaud estava ainda menos revelador:
Depois de escrever o Boeuf sur le Toit em que eu usei músicas folclóricas brasileiras, [...]
A primeira melodia folclórica brasileira citada em Le Boeuf sur le Toit é o maxixe de Tupinambá São Paulo Futuro (1914; letra de Danton Vampré), quando seu autorcujo nome verdadeiro era Fernando Álvares Loboera um estudante de engenharia de 25 anos. Foi o sucesso de uma revista de teatro homônima cujas peças retratavam um São Paulo ideal em uma época que a cidade estava passando por sérios problemas administrativos. São Paulo Futuro também tem a distinção de ser o primeiro maxixe com letra a ser gravado no Brasil.
Ouçam à gravação de Roberto Fioravante feita em 1968.
MaxixeTupinambá (18891953) foi rei do tanguinho, mas isso por pouco não aconteceu.
Em 1918, Fernando Lobo estava praticando engenharia civil na cidade provincial de Barretos, SP. Comprometido há pouco tempo com Irene Ferreira de Menezes, ele rejeitou o trabalho musical, considerado uma profissão vulgar (o pseudônimo artístico havia sido adotado para proteger o nome da família). Felizmente, a história não termina aí.
O editor paulistano João Campassi, parceiro de Pedro Angelo Camin na recém fundada C.E.M.B. (Casa Editora Musical Brasileira), seguiu o compositor até Barretos, propondo ofertas atraentes para suas canções. Dr. Lobo recusou resolutamente ganhar qualquer dinheiro com música. Segundo Benedicto Pires de Almeida no livro Marcelo TupinambáObra Musical de Fernando Lobo (1993), o compositor declarou ao Campassi: Desde que me formei, fiz o propósito de ser exclusivamente engenheiro e não mais músico. Músico no Brasil é sinônimo de cachaceiro, e eu não quero dinheiro nenhum vindo da música. Campassi não era nenhum bobo e teve uma conversa com a Irene. Mostrando para ela um catálogo ilustrado de pianos estrangeiros luxuosos, ele fez a proposta: Se a senhora convencer seu noivo a escrever seis músicas para nós, só seis, músicas leves, para piano, que ele compõe tão facilmente, e que nós editaremos, com os diretores [sic] autorais pertencentes à nossa firma, um piano será seu.
Era uma oferta que Fernando Lobo não podia recusarum piano importado valia quatro milhões de réis (compare o valor com aquele da unidade monetária em 1940).
Detalhe de uma folha publicitária da C.E.M.B.A primeira música que Tupinambá enviou sob o contrato foi o tanguinho Tristeza de Caboclo (1919; letra de Arlindo Leal). Campassi & Camin, seus editores, logo compensaram o custo do piano Matuschek, pois eles venderam 120.000 partituras de Tristeza de Caboclo em um ano. A melodia desse tanguinho é conhecida no mundo da música erudita como o Tango des Fratellini, de Milhaud, música que ganhou o nome dos famosos palhaços do Cirque Médrano que, vestidos de mulher, dançaram sob seus acordes no balé de Jean Cocteau Le Boeuf sur le Toit ou The Nothing Doing Bar (O Bar da falta do que fazer), de 1920.
Ouçam à gravação que o pianista Marcelo Guelfi fez de Tristeza de Caboclo em 1983.
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Os três irmãos Fratellini por Fernand LegerNo início da década de 20, a visão de Fernando Lobo deteriorou-se a um ponto em que ele foi forçado a abandonar a engenharia e ter como ganha-pão unicamente a música. Ele se mudou para São Paulo, onde permaneceu pelo resto de sua vida. Rio de Janeiro era o centro da música popular, mas isso não impediu Tupinambá de se tornar um compositor famoso em todo o Brasil. Em 1923, Os Oito Batutas de Pixinguinha gravaram suas músicas Até a Volta e Até Eu (o repertório dos Batutas também incluiu A Vida É Essa; Toada; Tristeza de Caboclo; Ruana; e Chão Paradotodas dele). Dentre os vocalistas ilustres que gravaram suas canções nos últimos 80 anos podem-se encontrar Bahiano, Bidu Sayão, Francisco Alves, Gastão Formenti, Vicente Celestino, Abigail Maia, Mário Pinheiro, Belmira Stella, Patricio Teixeira, Jesy Barbosa, Sílvio Caldas, Elisinha Coelho, Trio Melodia (Nuno Roland, Paulo Tapajós e Albertinho Fortuna), Ely Camargo, Roberto Fioravante, Inezita Barroso e Marisa Monte,* sem mencionar os inúmeros instrumentalistas que também gravaram Tupinambá.
O compositor se envolveu intimamente com a indústria nascente de radiodifusão, regendo orquestra em várias emissoras de rádio. Ele estava sempre presente em ocasiões históricas. Em 1929, quando a Rádio Cruzeiro do Sul inaugurou sua programação definitiva, a primeira transmissão incluía a valsa de Tupinambá Coração (letra de Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado).
A transmissão inaugural da Radio Bandeirantes no dia 6 de maio de 1937 apresentou Tupinambá Tupinambá juntamente com seus colegas, os maestros Miguel Izzo, Leo Peracchi e Lyrio Panicali. Quando a TV Tupi começou a transmitir no dia 18 de setembro de 1950, a cantora Lolita Rodrigues interpretou O Hino da TV (também conhecido como Canção da TV), composto para a ocasião por Tupinambá com letra de Guilherme de Almeida.
Tupinambá compôs pelo menos 265 músicas, dentre elas cateretês, valsas, maxixes, tangos e até mesmo algumas peças eruditas. No entanto, ele era mais conhecido por suas canções iniciais, todas inspiradas no sertão e com sabor nordestino. Assim, o engenheiro de São Paulo chegou mais perto do que ninguém em criar melodias folclóricas brasileiras.
= = =* Em seu álbum Mais, Marisa Monte gravou a canção Borboleta, dita ser originária do folclore nordestino. A melodia é indêntica à do tanguinho Maricota, Sai da Chuva (Marcelo Tupinambá/Arlindo Leal; 1917), outra música citada por Milhaud. A canção folclórica original, “Borboleta de Natal”, foi recolhida em Segipe por Sylvio Roméro, que a editou no livro Cantos populares do Brasil (1897). A partitura de “Borboleta de Natal”, adaptada para piano e voz por Annibal de Castro e editada pela Casa Vieira Machado em 1898 ou 1899, mostra uma melodia que nada tem em comum com aquela de Maricota, Sai da Chuva.
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